As peças do puzzle financeiro
"Basta um floco de neve para causar uma avalanche. Apesar disso, não é para o floco de neve que devemos olhar, mas sim para o conjunto de neve instável como um todo". A metáfora da avalanche foi criada por James Rickards, advogado americano especialista em mercados financeiros, para explicar a crise financeira de que todos falam.
Olhemos então para as instáveis montanhas nevadas que se erguem nos vários cantos do globo para tentar perceber o que aí vem.
Nos fóruns económicos um dos temas do ano foi a hipótese de uma estagnação secular. O debate surgiu depois de uma conferência de Larry Summers, e envolveu alguns dos mais conceituados economistas mundiais, que disputam as razões do fraco desempenho das economias ocidentais depois do "crash" financeiro de 2008. Nas vésperas de 2017, quase uma década depois da crise, tanto os EUA como, principalmente, a UE, mal conseguiram recuperar os níveis de investimento e crescimento anteriores a 2008 (que também não foram famosos quando comparados com décadas anteriores).
Enquanto nas universidades, jornais e blogs se trocam argumentos sobre o fraco desenvolvimento produtivo das economias capitalistas maduras, os mercados financeiros somam e seguem. As promessas de regulação não passaram de uma ilusão, e as poucas que sobreviveram estão agora em vias de ser revertidas. Talvez por isso os principais índices bolsistas americanos estejam a bater records. A última vez que o índice bolsista Dow Jones cresceu a esta velocidade foi antes da crise dos dot-com em 1999, e o que se prevê é que o record histórico de valorização seja batido rapidamente. Os alertas estão no vermelho, e não é preciso esperar que a bolha rebente para saber que ela está lá.
Os ventos da China não são melhores. A economia tem alavancado as suas taxas de crescimento em crédito, que cresceu 20% ao ano entre 2009 e 2015. A bolha imobiliária é visível no aumento do preço da habitação nas principais cidades chinesas, que chegou a atingir 40% no ano passado. A dívida privada não bancária passou de 150% para 200% do PIB e o Banco Central Chinês já mostra dificuldades em manter a liquidez de um sistema cada vez mais amedrontado. A corrupção endémica embrulha esta embrulhada económica que não terá um bom fim.
A Europa lida com os seus próprios problemas. O sistema bancário está quase tão frágil como há cinco anos. Como os casos português ou italiano demonstram, ainda há milhares de milhões de perdas por reconhecer. A dívida privada não financeira é 182% do PIB em Portugal, 166% na Bélgica, 144% em França, e 303% na Irlanda. Esta dívida paralisa a atividade do setor empresarial, leva famílias à bancarrota, ameaça a solvabilidade dos bancos e dos Estados. É, na verdade, uma das causas da estagnação.
Olhemos em volta então à procura de soluções.
O BCE é dominado por um dogma patético que o impede, não só de financiar diretamente os Estados, como de coordenar políticas económicas com os governos. Fez, por isso, o que sabe fazer: injetou mais de um trilião de euros no sistema bancário. Essa liquidez foi usada para animar os mercados bolsistas e financeiros, mas não resolveu qualquer outro problema: a inflação continua em mínimos, tal como as taxas de juro, e se recuperarem será mais por influência do petróleo que de outra coisa; os balanços continuam carregados de ativos sem valor; os Estados continuam dependentes dos sopros dos mercados.
Da Comissão e do Conselho só sai mais do mesmo: austeridade. Austeridade que impede o investimento público, que trava a recuperação dos rendimentos do trabalho e limita a intervenção no mercado bancário. Tudo em nome de uma meta, inscrita no Tratado Orçamental, que nunca, repito, nunca, será atingida.
No contexto Europeu, a maioria política de esquerda tornou Portugal numa experiência rara: estabilidade política, valorização de rendimentos e recuperação de direitos. Mas o excessivo endividamento, público e privado, bem como a propriedade estrangeira de setores estratégicos da economia, como a banca, tornam-nos altamente vulneráveis a choques externos.
Para onde quer que olhemos em busca de soluções sistémicas encontramos apenas crise. Não é uma nova crise, é a mesma crise, porque a sua raiz não se alterou.
A reestruturação da dívida pública é uma das respostas sistémicas para a crise. Só esta operação pode estancar a drenagem de vastos recursos públicos para fora do país e oferecer margem de manobra ao Estado para políticas de emprego e crescimento. O controlo público e nacional da banca é outra das respostas. Mas isso implica um vasto processo de limpeza dos balanços, com perdas para os acionistas. É duro, mas é o preço a pagar por um sistema financeiro funcional, altamente regulado e democraticamente controlado. Estas restruturações teriam o efeito de desendividar o país e, em larga escala, a Europa.
Sem soluções que caminhem neste sentido, 2017 será o ano em que, mais uma vez, a Europa não aprende com os erros do passado. E dada a instabilidade das montanhas de neve que se erguem à nossa volta, nada fazer é, simplesmente, esperar pela avalanche.
Mais lidas