Legenda: Manuel Requicha Ferreira considera que o novo regime introduz uma mudança estrutural na forma como são realizadas as operações de cessão e gestão de créditos bancários.
O novo Regime da Cessão e Gestão de Créditos Bancários marca uma mudança estrutural na forma como as operações de compra, venda e administração de créditos são realizadas em Portugal. Alinhado com o quadro europeu para a gestão e aquisição de carteiras, o regime define quem pode gerir créditos performing e non performing, sob que condições e com que supervisão. Introduz autorizações específicas, reforça regras de conduta e consolida salvaguardas para os devedores, estabelecendo um mercado secundário de crédito mais transparente e com impacto direto na atividade financeira.
Para Manuel Requicha Ferreira, sócio coordenador de Bancário e Financeiro da Cuatrecasas, a criação de um enquadramento regulatório próprio para estas operações representa a mudança mais profunda. “A principal alteração é a criação de um regime com regras específicas para as operações de compra e venda de créditos e a sua gestão aplicável tanto a bancos como a sociedades financeiras, fundos ou até terceiros que comprem estes ativos”. Até agora, recorda, existiam apenas regras dispersas no Código Civil ou no regime da titularização, o que criava zonas cinzentas na prática.
Outra mudança relevante é a qualificação da gestão de créditos como atividade regulada. Segundo o sócio da Cuatrecasas, “a gestão de créditos só pode ser exercida, em regra, por entidades já reguladas, como bancos, sociedades financeiras, instituições de pagamento, ou pela nova figura do gestor de créditos que exige autorização prévia do Banco de Portugal”. Esta alteração aumenta a exigência supervisória e introduz um maior rigor na organização interna dos servicers.
O legislador português decidiu ir além do âmbito mínimo previsto na diretiva europeia, alargando o regime a um conjunto mais vasto de créditos. Manuel Requicha Ferreira considera que esta opção foi acertada. Refere que “o legislador optou por abranger não apenas os conhecidos NPLs mas também os créditos qualificados como de improvável cumprimento há pelo menos 12 meses quando o devedor seja uma empresa”. Este alargamento clarifica o tratamento das chamadas UTPs e incentiva os bancos a desfazerem-se mais cedo de exposições com baixo potencial de recuperação. Manuel Requicha Ferreira prevê que “esta mudança acelere a transferência interna de créditos para equipas de recuperação e a criação de carteiras para venda, ao mesmo tempo que aumenta o interesse dos investidores especializados que procuram UTPs para reestruturação ou conversão em capital, operações que os bancos não conseguem realizar.”
No que respeita às salvaguardas do devedor, o novo enquadramento introduz o princípio da neutralidade da cessão. Manuel Requicha Ferreira considera que este reforço não altera substancialmente a relação entre devedores e gestores. Sublinha que “o devedor não pode ser colocado numa posição menos favorável em resultado da cessão e o cessionário fica sujeito, na mesma medida que o cedente, à legislação aplicável ao direito de crédito cedido”. Reconhece que os servicers portugueses já observavam este princípio na prática, mas alerta que a sua formalização pode introduzir alguma subjectividade na avaliação da admissibilidade das operações, “o que não é desejável para a segurança jurídica.”
Quanto à preparação do mercado, o sócio da Cuatrecasas antecipa uma adaptação assimétrica, e destaca que “os grandes servicers em Portugal não terão problemas com estes requisitos porque já os cumpriam na prática”. As dificuldades deverão afetar sobretudo os operadores com estruturas mais leves, que terão de reforçar sistemas de governo interno, mecanismos de controlo e funções de reporte para cumprir os novos padrões regulatórios.
Entre os desafios operacionais mais relevantes está a proibição de os gestores receberem fundos dos devedores, uma opção nacional que excede a flexibilidade prevista na Diretiva, e sublinha a relevância prática desta regra. Recorda que “os compradores finais dos créditos não tinham, por norma, contas abertas em Portugal e uma das funções dos gestores era precisamente essa gestão dos fundos recebidos”. A proibição obrigará adquirentes estrangeiros a abrir contas no país ou a criar novas estruturas operacionais, o que poderá dificultar a entrada de novos players e criar fricções desnecessárias num mercado que passa a ser regulado.
No segmento da titularização, os efeitos das novas regras serão limitados. A partir de agora, a gestão dos créditos cedidos para operações de securitização terá de ser assegurada por entidades habilitadas para o exercício de gestão de créditos. Como esta atividade já estava concentrada nos principais servicers do mercado, não se antecipam obstáculos significativos. Existem também novas regras para a notificação aos devedores em caso de cessão, mas Manuel Requicha Ferreira considera que não criam barreiras desproporcionais.
Os players mais impactados serão os servicers, que passam a estar sujeitos a autorização do Banco de Portugal e a requisitos mais exigentes quanto à estrutura, governação e operações. Em segundo lugar surgem os bancos, que passam a ter regras mais concretas na formação e venda de portfolios de NPLs ou UTPs. Por fim, os adquirentes poderão ser obrigados a deter contas em Portugal ou a repensar as estruturas utilizadas para finalizar as operações de compra.
Apesar de o mercado já antecipar parte destas mudanças, Manuel Requicha Ferreira não acredita que a adaptação esteja concluída até dezembro de 2025. Refere que “a adaptação plena apenas se dará durante o ano de 2026 porque há alterações significativas que não são suscetíveis de ser implementadas num tão curto espaço de tempo”. O novo regime representa, assim, uma transformação profunda que exigirá ajustamentos progressivos de todos os intervenientes no mercado de crédito.