No encerramento da segunda edição do Media Trends: What’s Next?, iniciativa lançada em 2024 pela Medialivre, a sessão abriu com as boas-vindas de Luís Ferreira, Diretor-Geral Comercial da Medialivre, e de Fernanda Marantes, CEO do grupo Havas Media Network, antes de a agência assumir o palco. Foi a última de cinco talks que reuniram as principais agências de meios. O fecho deixou um diagnóstico inequívoco: como disse Sofia Vieira, Insights & Strategy Director do grupo Havas Media Network, “a atenção é um bem escasso”, e isso muda tudo. “Efetivamente estamos a falar de um puzzle complicado. Ou melhor, de um puzzle complexo.” A imagem não foi escolhida por acaso: o consumo de media tornou-se um mosaico em constante mutação, em que cada utilizador salta entre dezenas de opções e já não existe uma experiência comum. “Chegámos à era da nova fragmentação, ou fragmentação 2.0”, explicou a Insights & Strategy Director do Havas Media Network.
Scrolling e atenção dispersa
O scrolling é hoje um comportamento central. “O polegar nunca esteve tão ativo”, ironizou Sofia Vieira. Mas esse gesto diário traduz a procura de conteúdos mais curtos, rápidos e de fraca retenção. É o zombie scrolling: um consumo passivo, em que a atenção se dispersa e a memória se perde a curto prazo. Foi neste ponto que a responsável do Havas Media Network reforçou a ideia de engagement passivo: os utilizadores entram em contacto com os conteúdos, mas muitas vezes sem verdadeiro envolvimento. “Há visualizações, cliques e impressões, mas pouca profundidade na relação. Não basta estar presente no feed. É preciso trabalhar formatos que gerem participação e criem memória”, sublinhou.
A atenção também se divide entre ecrãs: enquanto se vê televisão, o telemóvel está quase sempre na mão. O resultado é uma dupla distração, em que nenhum conteúdo é absorvido em pleno.
O zapping para lá da televisão
O zapping deixou de estar confinado à TV. “Parece que consumimos mais, mas na verdade retemos menos”, observou a Insights & Strategy Director do Havas Media Network. Hoje saltamos de canal, app ou série numa busca incessante por algo mais adequado ao momento. Neste ponto, Sofia Vieira destacou a forma como muitos consumidores rejeitam as notícias em canais tradicionais, por cansaço ou perceção de negatividade. Esse movimento é preocupante: se por um lado os consumidores passam a procurar informação em criadores digitais e personalidades online, “estão a ganhar espaço como fontes de informação, sobretudo para as gerações mais novas”, por outro, os meios de referência mantêm um papel essencial no combate à desinformação.
O paradoxo do streaming
O streaming deu ao utilizador o poder de escolher, mas também multiplicou a indecisão. “O tempo que antes era controlado pela grelha é agora controlado pelo utilizador e, muitas vezes, a decisão demora mais do que o visionamento”, comentou a Insights & Strategy Director do Havas Media Network. Ficou clara também a rejeição da publicidade tradicional: a maioria prefere menos anúncios, muitos fazem skip imediato e apenas uma minoria aceita pagar para não os ver. O desafio, disse, não é eliminar a publicidade, mas torná-la mais útil e menos intrusiva. Esta dispersão cria o que o Havas Media Network designa de fragmentação 2.0.
Em 2013, os cinco principais canais concentravam 73% da audiência. Em 2025, valem 61%. No mesmo período, “outros” – streaming, YouTube, consolas, plataformas digitais não lineares – passaram de meia hora diária para mais de 70 minutos. O resultado é um achatamento da curva de concentração: já não há prime time que resolva. Hoje, a cobertura constrói-se por acumulação de contextos.
Comunidades privadas e IA
“Estamos cada vez mais a migrar para comunidades privadas”, alertou Sofia Vieira. “Já não partilhamos a mesma internet.” Esta migração para grupos fechados acentua a polarização e mina o espaço de debate comum, pois cada comunidade constrói a sua própria narrativa, reforçada por afinidades e filtrada por algoritmos. A inteligência artificial é outra camada do puzzle. O Google, que sempre dominou com cerca de 92% de quota em Portugal, começa a perder terreno, mesmo que lentamente. “Está a cair menos de um ponto percentual por ano, mas agora terá de competir com uma nuvem de soluções potenciadas por inteligência artificial generativa”, explicou a Insights & Strategy Director do Havas Media Network, citando OpenAI, Meta, Gemini e Grok. “Estes sistemas já não devolvem uma lista de links, mas oferecem respostas únicas e filtradas.”
O impacto é profundo: em vez de múltiplas hipóteses, os utilizadores recebem apenas uma versão. Isso significa que marcas e conteúdos têm menos oportunidades de aparecer e só quem conseguir ser claro e relevante terá lugar. nessas respostas. “Isso altera radicalmente a forma como somos encontrados”, sublinhou Sofia Vieira.
O painel: entre performance e legado
Moderado por Filipe Neves (Managing Partner da Arena Media), o debate contou com Hugo Bento, Diretor de Marketing da Brisa, e Ricardo Sacoto Lagoa, Diretor de Marketing, Sensibilização e Comunicação da Sociedade Ponto Verde (SPV). Hugo Bento abriu com uma advertência: “Se estamos presos [à performance], alguma coisa não estamos a fazer bem.” Admitiu a pressão por KPI imediatos, mas rejeitou a ideia de que o curto prazo possa comandar sozinho. Recordou o caso Via Verde, com mais de 30 anos de comunicação, para sublinhar que reduzir a relação a métricas imediatas é perder diferenciação. “Uma má experiência amplificada nas redes pode corroer anos de reputação em dias”, avisou.
Falou ainda do disparo dos custos de aquisição e explicou que a Brisa reforçou meios próprios, aplicou foco em conteúdo e passou a trabalhar mais em ecossistema. “O consumidor não quer saber em que canal está a falar connosco. Quer coerência de marca”, resumiu o diretor de marketing da Brisa.
Ricardo Sacoto Lagoa, da SPV, destacou a complexidade de falar com tutela, municípios, parceiros e cidadãos. “O primeiro desafio é falar com todos sem dizer coisas diferentes.” Mencionou programas em escolas – “os miúdos corrigem os pais em casa” – e presença em festivais.
Sobre o TikTok, Ricardo Sacoto Lagoa brincou: “Se no fim a embalagem for parar ao ecoponto, então dança-se.” Estar nas plataformas certas, com a linguagem certa, é indispensável. “Um erro no TikTok não é o mesmo que no LinkedIn. Os códigos são diferentes e o que é erro para um público pode ser apenas não sou o target para outro.”
No final, abordou os mitos sobre reciclagem: “Vai tudo para o mesmo sítio.” Defendeu ser “aborrecidamente consistente”: mostrar operações, explicar contaminações que obrigam a desviar resíduos, repetir a verdade até ganhar tração. O painel concluiu que sem branding não há performance sustentável. No caos fragmentado, criar memória vale mais do que ganhar apenas impressões. Sofia Vieira deixou a síntese: “Atenção trabalha-se com contexto, consistência e clareza sobre quem se é e para quem se fala.”