Como uma farmacêutica chinesa avançou na corrida à vacina contra a covid-19
Os cientistas deixaram os seus cargos em farmacêuticas globais no Canadá para estabelecer uma empresa de biotecnologia a meio mundo de distância em Tianjin, na China, na esperança de produzir vacinas ao nível das dos países ocidentais.
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Agora, essa empresa, a CanSino Biologics, está no centro das atenções globais, figurando entre os líderes na corrida por uma vacina contra o coronavírus.
O CEO da CanSino, Yu Xuefeng, nascido na China e ex-executivo da unidade canadiana de vacinas da farmacêutica Sanofi, mantém contactos no Canadá e na China, mesmo numa altura em que as divergências geopolíticas polarizam os dois países. Yu reforçou as proezas científicas da sua empresa ao associar-se à maior organização de pesquisa do governo canadiano. Na terra natal, trabalhou com uma destacada cientista militar chinesa, primeiro com uma vacina contra o ébola, e agora, com a vacina experimental para o coronavírus da CanSino.
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Em maio, a CanSino tornou-se a primeira empresa, a nível global, a publicar um estudo científico completo sobre os seus primeiros testes em humanos, um passo importante porque permite que investigadores de todo o mundo avaliem o potencial da vacina.
A empresa - que ainda não gera receitas e registou prejuízos de 22 milhões de dólares no ano passado - conseguiu até agora acompanhar e, por vezes, superar gigantes farmacêuticas ocidentais com a velocidade dos seus testes iniciais à vacina contra o coronavírus. A pesquisa ainda é muito incipiente para saber se a vacina da CanSino, ou mesmo de qualquer empresa, será a bala de prata que os países procuram para reabrir as economias no contexto da pandemia. Mas as incursões da CanSino mostram que a jovem indústria de biotecnologia da China é uma concorrente global e uma ferramenta poderosa para o presidente Xi Jinping.
A CanSino "tem mérito pela velocidade com que avançou com a vacina em estudos pré-clínicos e testes em humanos", disse Wang Ruizhe, analista do setor farmacêutico da Capital Securities, em Xangai. "Isso diz algo sobre a capacidade deles de mobilizar e alavancar os recursos necessários para realizar tudo isso. Os recursos necessários são significativos".
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Um porta-voz da empresa chinesa disse, em maio, que o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, apoia os investigadores canadianos que trabalham em ensaios clínicos para uma vacina contra o coronavírus com a CanSino.
A indústria farmacêutica da China tem sido perseguida por incidentes de segurança e escândalos relacionados com a qualidade. Mas, nos últimos anos, partes dessa indústria tornaram-se com o regresso ao país de centenas de cientistas chineses treinados no Ocidente.
Chamados de hai gui, ou "tartarugas marinhas", esses retornados capitalizaram os relacionamentos e a experiência adquirida em países como os EUA e o Canadá e criaram novas empresas. O CEO da CanSino, Yu, de 57 anos - doutorado em microbiologia pela Universidade McGill do Canadá e chefe do desenvolvimento e produção de vacinas da Sanofi Pasteur no Canadá - pertence a essa nova geração de executivos.
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No prospeto da oferta pública de 2019 da CanSino em Hong Kong, Yu descreveu as escolhas difíceis que ele e os seus colegas fizeram para criar o seu caminho de volta à China.
"A maioria das nossas famílias ficou no Canadá e só podíamos vê-las algumas vezes por ano", escreveu. "Quando pensas nos filhos pequenos e adolescentes a crescer sem pais, quando sabes que a tua mulher teve de tirar sozinha mais de 20 centímetros de neve ao início da manhã com o vento a -20 ° C - esses foram os momentos difíceis."
O nome CanSino representa os caracteres chineses da saúde, esperança e promessas, enquanto em inglês é uma combinação de Canadá e China. Além de Yu, há outros altos funcionários da empresa com ligações ao Canadá. O Diretor Científico Zhu Tao também foi cientista da Sanofi Pasteur no Canadá.
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Em fevereiro de 2014, cerca de cinco anos após o regresso à China, Yu licenciou uma tecnologia do Conselho Nacional de Pesquisa do Canadá chamada linhas de células HEK 293, necessária para produzir grandes quantidades de uma vacina de forma confiável. Essa ciência passou a sustentar em parte a tecnologia de vetores virais da CanSino.
Um vetor viral é um vírus geneticamente modificado que já não é prejudicial aos seres humanos, mas que pode servir como um veículo para transportar os genes de outro germe para preparar o sistema imunológico para o ataque. Poucas empresas chinesas possuíam essa tecnologia em 2014, quando uma investigadora do exército chinês chamada Chen Wei começou a pesquisar mais sobre vetores virais para produzir uma vacina que pudesse conter o surto de Ébola em África.
Chen chefiou o Instituto de Biotecnologia da Academia de Ciências Médicas Militares do país. Depois, passou a trabalhar com a CanSino para desenvolver uma vacina contra o Ébola que, em 2017, foi aprovada na China para uso de emergência e armazenamento nacional.
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O longo relacionamento da CanSino com Chen foi frutífero, mais uma vez, este ano. A CanSino e aequipa de Chen realizaram estudos pré-clínicos da vacina contra o coronavírus - chamada Ad5-nCoV – e garantiram a ajuda de Pequim em tudo, desde o isolamento de estirpes do vírus até testes em animais.
A equipa iniciou testes clínicos em humanos em Wuhan, a cidade chinesa onde o coronavírus surgiu pela primeira vez, a 16 de março. A Moderna Inc., com sede em Massachusetts, considerada um dos melhores candidatos a produzir uma vacina americana, iniciou os seus testes nos EUA no mesmo dia. Menos de um mês depois, a CanSino iniciou a segunda fase de testes em larga escala em humanos. A 22 de maio, quando publicou um estudo na revista médica The Lancet, os resultados foram mistos: a vacina parecia segura e gerou alguma resposta imune, mas houve algumas deficiências.
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A tecnologia do vetor viral pode ter limitações quando algumas pessoas já têm imunidade pré-existente ao vírus do vetor usado para criar a vacina. Foi o caso do adenovírus, um vírus geneticamente alterado que a CanSino usou para a sua vacina. Muitos dos pacientes com imunidade ao adenovírus pré-existente apresentaram uma resposta reduzida à injeção de coronavírus no estudo da Lancet.
Os laços dos fundadores da CanSino com o Canadá estão mais uma vez mais a revelar-se proveitosos, numa altura em que a empresa se prepara para começar a fase três de testes à sua vacina. Ainda assim, pode haver desafios na realização dos vários estudos que são necessários nos estágios finais, se as novas infeções por coronavírus continuarem a diminuir no Canadá. A China acabou com o surto.
Investigadores do Centro Canadiano de Vaccinologia da Universidade Dalhousie, que lideram os ensaios clínicos, disseram que esperam iniciar os estudos da Fase III da vacina da CanSino já neste outono. O Conselho Nacional de Pesquisa do Canadá disse que, se a vacina for aprovada pelas autoridades locais, poderão ser produzidas doses para uso de emergência no Canadá.
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A CanSino não é, porém, a única empresa bem posicionada na corrida pela vacina. A Moderna tem planos para testar a sua vacina em 30.000 pessoas nos EUA em julho, enquanto um estudo em estágio inicial da Pfizer Inc. e da BioNtech SE mostrou que a sua vacina é segura e que levou os pacientes a produzirem anticorpos contra o coronavírus. Uma vacina co-desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela AstraZeneca Plc também iniciou a etapa final dos testes em humanos no Brasil em junho.
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