A Identidade "Em Carne Viva"
A jovem que perfilhou e a própria encaminhavam-se para a maternidade, o parto eminente. Já a bordo do autocarro, vazio por causa do medo que enche as ruas, chega a hora. A grua onde a câmara se suspende para que ouçamos o primeiro choro, faz o "travelling" do interior para o exterior do autocarro, revelando a monumental cidade. O autocarro que era o cenário, é agora um traço na paisagem urbana.
A "avó" dá as boas-vindas ao recém-nascido: "Mira, Victor, Madrid!"
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Em 1997, Pedro Almodóvar estreava "Em Carne Viva" ("Carne Tremula", no original). Um "film noir", inspirado na obra homónima de Ruth Rendell, com Javier Bardem e Penélope Cruz (entretanto, dois dos mais lucrativos produtos de exportação da cultura espanhola que Almodóvar, precisamente, apadrinhou), de trama feita do cruzamento entre erotismo e morte, medo e euforia, entrega sacrificial e existencialismo hedonista que, entre muitas outras insondáveis imagens contraditórias, marcam a carga distintiva da palavra "Espanha".
Victor crescerá resiliente na cosmopolita "movida". E é da improbabilidade das coincidências à escala desconcertante da cidade, que se faz o desenvolvimento da história, sempre marcada por personagens perseguidos pelo seu passado, por reencontros que são resultado da obstinação, por decisões tomadas pela paixão, pela tentação. Nesta obra, como noutras de Almodóvar (como "Fala com ela" de 2002, por exemplo), é difícil medir o peso relativo do fenómeno identitário na obra, isto é, em que medida é Almodóvar resultado de uma "cultura" ou em que medida é essa cultura "produto" de Almodóvar; certo, é que o assombro dos seus filmes só viaja para mercados como o Americano, porque a marca da sua autoria estava, à partida, liberta da pressão dos mesmos, por uma política de audiovisual consistente e tranversal, ligando o apoio à criação, à gestão dos canais públicos de televisão, ou à reabilitação urbana, por exemplo. Para a maioria dos nossos líderes políticos, Almodóvar só não é um "subsidiodependente" porque tem "sucesso", o que revela a mais completa ignorância sobre o que quer que seja relacionado com a gestão da criatividade e a sua produção e comunicação, seja em que escala for, porque dificilmente o que nasce para ser "industrializado" pode ser realmente, criativo e original. E é precisamente na originalidade que está sempre a oportunidade de mercado.
Em relação directa - embora eventualmente não aparente - com este fenómeno da interferência do estreitamento do modelo de Estado na imagem que de nós fazemos, estão as manifestações na Porta do Sol, na mesma Madrid. "Reforma da Lei Eleitoral no sentido de uma Democracia efectivamente participativa, combate à corrupção com medidas concretas pela transparência política, separação efectiva dos poderes públicos, criação de medidas de controlo dos cidadãos sobre a efectiva responsabilidade política" são as quatro revindicações oficiais do movimento, nenhuma delas partidária, todas "constitucionais". Não importa se esta é a "primavera Árabe" europeia, ou se - como é provável - muita da cidadania que legitima o movimento se diluirá na contaminação que os Partidos dele inevitavelmente farão, ou, pior ainda, na redução desta visão de Estado a meia dúzia de alíneas avulsas num qualquer programa político a anunciar em breve. Essencial é, desde já, perceber que o que revolve os dias de hoje não será mais difícil do que a fome que se passou no "antigamente", mas que desta vez os cidadãos estão envolvidos não numa luta por uma "utopia" ou "economia", mas pelo resgate da sua identidade, reclamando não benesses, mas representação.
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Madrid não está deserta do medo, nem cheia de revolucionários; estes não são os filhos da madrugada, são os filhos da Europa.
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