António Mateus antoniomateus@hotmail.com 14 de Junho de 2005 às 13:59

Pirâmide à portuguesa

O bafo quente e húmido, carregado de maresia, vergava as palmeiras na Costa do Sol. A brisa de fim de tarde, transportava o cheiro adocicado das mangas de fios, que os meninos sugavam, sentados no paredão, com os pés de molho na ondulação acastanhada da b

Falati ergueu os olhos para mamana Lorena, prantada junto aos veleiros, recém-chegados da pescaria e atirou-me uma directa: «Sabes aquela da mulata que ia a passear na praia, com a cesta à cabeça, carregada de caranguejo?». «Não» - ripostei automaticamente, sorrindo, no prazer antecipado, de o negrão, de Manjacaze, me estoirar mais umas gargalhadas.

– «Pois então, como t’empurrava, a mulata boazuda lá ia com a cesta carregadinha, a desafiar a gravidade no cocoruto, e o atino dos olhos machos, enfeitiçados na praia ao ritmo do gingar das suas ancas.

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– «Gininha era bem conhecida no areal do Triunfo. Pela língua rápida e certeira. Tanto como pela velocidade com que despachava, cesta após cesta, o carrego de marisco nas bancas do Mercado.

– «Naquele dia, o ti Manel, trocara o aconchego da patroa pelas paisagens, móveis, que ao entardecer transformavam o areal, numa passerelle de sedução.»Olha lá, ó boazuda! - atirou-lhe o beirão, com a coragem acelerada pelo quarto bagaço da tarde. «Como é que tu consegues levar esse caranguejo todo empilhado? Não tens medo qu’ele caia daí abaixo?».

Gininha apontou-lhe os máximos dos faróis, castanhos, e antes que o vento levasse as palavras do Ti Manel, ela devolveu-lhe o eco:

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«Não tem probrema. Não tem mesmo», assegurou ela, com um trajeito, malandro, a dançar-lhe nos beiços. «Sabe? Isto é caranguejo português!» - pontuou ela, deixando o tuga pendurado no remate.

«Como lhe dizia pátrão. Não tem probrema. Porque é caranguejo português... sempre c’um chega lá ‘cima, os ótro puxa prà baixo!» - e vincou ainda mais a curva da boca, desenhada num sorriso rasgado.

Ti Manel hesitou entre os papéis de contente e o de ofendido. Por via das dúvidas, escolheu o primeiro.

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Provavelmente era do bagaço marado, comprado na Rua Araújo, a preço de amigo, ao Zé do Pipo, o único vendedor de tintol que sobreviveu na capital, ao parto violento da independência do país e ao processo inflamatório que de imediato se seguiu.

Agora, eles chegam às revoadas. Os velhos, retornados, e os novos. E os que, desencantados com o umbiguismo vazio da tugolândia, preferem começar do zero, na terra da Boa Gente a viver num país onde ter saudades de África, ou por ela se perder, é sinal pecaminoso. Politicamente incorrecto.

Gininha nunca leu este livro da vida, mas era como se o tivesse feito há gerações. Caranguejo português, que equilibra a pirâmide, puxando os do topo para baixo? Hum? só coisa mesmo de cafre. Porque a realidade não tem nada disso. Ou será que tem?

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