Nicolau do Vale Pais 23 de Março de 2012 às 11:43

O coice da mula

Nada efectivamente transformador - para além da consagração do direito à indignação e da ligeira esperança que a catarse sempre traz - parece ter nascido de mais uma "revolução" em Março do ano passado.

"Todos os opressores atribuem a frustração dos seus desejos à falta de rigor. Por isso, redobram os esforços da sua impotente crueldade."

"Para o triunfo do mal, só é preciso que os homens bons não façam nada."

"Para o triunfo do mal, só é preciso que os homens bons não façam nada."

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Edmund Burke, Irlanda 1729 - EUA. 1797. Advogado, Filósofo, Político. Apoiante da Revolução Americana e opositor da Revolução Francesa; considerado fundador do Conservadorismo Moderno, bem como representante do Liberalismo Clássico.

Nada efectivamente transformador - para além da consagração do direito à indignação e da ligeira esperança que a catarse sempre traz - parece ter nascido de mais uma "revolução" em Março do ano passado. Aliviados paliativamente, amarguramos agora a ressaca. Foi bonito mas, como disse William Morris, designer industrial têxtil britânico do séc. XIX, "nada inútil pode ser realmente bonito". Continuamos "indignados".

A opinião pública portuguesa vive um caso sério de dissociação entre os problemas com que sofre e os responsáveis pelos mesmos e, por isso, tem dificuldade em encontrar soluções nas quais se possa sentir representada. Este é, porventura, o défice democrático. Nos mais novos, cresce a ideia de que é possível transformar sem Política, de que a Liberdade está para durar, e que o sistema que faz a República se pode desprezar em nome da falácia tecnológica e consumista da afirmação individual. Há cerca de duas semanas, Manuel Maria Carrilho, em artigo no "Diário de Notícias", designava esta "ilusão" como a da "democracia impolítica", lembrando também que não se pode confundir o poder de um detonador mediático como a "manifestação dos indignados", com a sua real capacidade de transformação. Que, sabemos agora, é nula.

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A nossa opinião pública vive uma espécie de Síndroma de Estocolmo, um estado psicológico identificado por Nils Bejerot nos anos setenta, e que consiste numa reacção extrema de sobrevivência por parte das vítimas de sequestro, que se enfatuam pelos seus carcereiros, tentando subconscientemente aumentar as suas possibilidades de sobrevivência - chegam ao ponto de pôr em risco as próprias forças de auxílio, sabotando as manobras de salvamento. Foi isso que Bejerot - perito em psicologia do abuso - observou nos reféns durante o cerco montado aos raptores do Kreditbanken, em Estocolmo, precisamente.

A massa crítica portuguesa está tolhida desta forma. Nada prolifera em lado nenhum, porque o nosso sistema mediático é como uma mula: um híbrido, filho de espécies diferentes, resultante do cruzamento entre media e partidos. Cumpre, obediente, o seu serviço, mas é um híbrido e, portanto, por definição "biológica", estéril. Uma mula não gera mulas; para que nasça mais um espécime é necessário cruzar de novo a progenitura, repetindo o artificial processo. Dia após dia, telejornal após telejornal, líderes responsáveis pela situação, aspergem sobre nós o fel que resulta da sua própria culpa, em declarações tentativamente castradoras, graves, irresponsáveis. Ex-ministros, co-responsáveis, putativos futuros ex-qualquer coisa, todos tentam a intimidação: "temos de empobrecer", "a culpa é deste ou daquele grupo", "vivemos acima das nossas possibilidades", "temos de trabalhar mais", "temos de poupar mais", "temos de ser rigorosos", confundindo, com deliberado generalismo, os vícios exclusivos da classe liderante com a nossa sociedade como um todo. Auto-xenofobia, imoral diminuição de uma Cultura quase milenar como a nossa, é o que é. Na política-espectáculo, a sociedade transforma-se num circo onde as ideias ameaçam e a telegenia safa qualquer sacana.

Desresponsabilização cínica ou crueldade frustrada, esta é a legitimação de uma austeridade que, temo francamente, se destine exclusivamente à recapitalização das oligarquias político-empresariais, e jamais ao refundamento da nossa sociedade: é um coice extremamente perigoso, letal mesmo, o desta mula. Alguém há-de lhe chamar "sucesso", e colher os votos ou o que restar da sua importância.

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