Consensos e divergências na política comercial europeia
A revisão da política comercial está na ordem do dia. Ela situa-se no movimento mais geral de tornar a economia da União Europeia mais resiliente, com um maior controlo sobre as cadeias de produção e abastecimento de bens e serviços críticos; e, para tal, articula-se com a política industrial e a política de concorrência, também em revisão. O objetivo há de ser fortalecer o tecido económico europeu, assente nas pequenas e médias empresas, abrir oportunidades em todas as regiões, apoiar a transição verde e digital e assegurar condições de concorrência leal, quer no interior do mercado interno, quer no comércio internacional.
A comunicação da Comissão Europeia sobre a revisão da política comercial, publicada em 18 de fevereiro, constitui um bom ponto de partida para o debate entre os Estados-membros. A presidência portuguesa promoveu, na passada terça-feira, um conselho informal dos ministros responsáveis pelo comércio, que acolheu a comunicação. Esta é bastante equilibrada, mostrando que a Europa pode ser mais firme na defesa dos seus interesses, mas preservando a abertura ao exterior e a posição de primeiro parceiro comercial do mundo. Trabalharemos para que sejam aprovadas, em maio, conclusões do conselho.
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Contudo, o futuro da política comercial europeia não se joga apenas no plano doutrinário. E basta descer um pouco ao concreto das coisas para perceber que estamos perante um tema divisivo, nem todos alinhando pelo mesmo diapasão. As divergências nem sequer se organizam pelas linhas de fratura habituais entre Leste e Oeste ou Norte e Sul. As dificuldades de entendimento aumentarão, porém, se nós quisermos fingir que elas não existem. Há perguntas inescapáveis e inadiáveis, e é nas respetivas respostas que temos de basear o consenso possível.
Mais de quatro quintos do crescimento mundial esperado para os próximos anos ocorrerão fora da União Europeia. Acreditamos mesmo que uma deriva no sentido mais protecionista, criando barreiras à entrada ou aligeirando as regras de ajudas de Estado para favorecer supostos “campeões europeus” internacionalmente competitivos, nos tornará mais capazes de participar na economia global? Pura ilusão: o fechamento da Europa só agravará a tendência que hoje já se verifica para diminuir o seu peso no produto mundial.
E, se concordarmos que um neomercantilismo serôdio não leva a lado nenhum e que a ligação ao exterior continuará a ser o motor da pujança europeia, então é ou não verdade que os acordos comerciais e de investimento representam um instrumento-chave da pretendida “autonomia estratégica aberta”?
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Poucos sugerem que tais acordos não devam ser condicionados ao cumprimento pelas partes das obrigações relativas às condições de trabalho ou ao respeito pelas regras sanitárias, ambientais, de sustentabilidade ou de subsidiação, sem as quais estaria em causa o princípio da concorrência leal. Coisa bem diferente é querer fazer do acordo comercial o lugar onde haveriam de confluir todos os requisitos de proximidade política ou institucional e todas as exigências que a Europa legitimamente coloca quando se trata de definir os seus aliados mais próximos. Se a Europa quisesse comerciar apenas com estritamente iguais, não só limitaria drasticamente o potencial da sua economia como sobretudo abdicaria de um dos mais poderosos meios de influência bilateral e global de que dispõe.
Acresce que, por vezes, as proclamações grandiosas sobre a necessidade de fazer depender qualquer acordo do respeito escrupuloso por todos os padrões europeus escondem a defesa chã de interesses meramente setoriais. Os quais se erguem contra os acordos, não porque eles desrespeitem valores, mas porque abalam proteções particulares ou posições adquiridas.
Há, finalmente, a questão da aprovação e ratificação de acordos já concluídos. Qual será a credibilidade futura da União, se ela não concluir os processos relativos, por exemplo, ao México e ao Mercosul, que há muito foram objeto de acordos políticos entre as partes negociais? Ou se der provas de manifesta desconformidade entre o empenho que coloca em fechar acordos com estes e querer ratificá-los a toda a brida, quando usa de todo o vagar com outros?
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Estas perguntas colocam-se, hoje, dentro e fora da União Europeia. O futuro da política comercial depende de saber responder-lhes com clareza. A comunicação da Comissão foi um bom ponto de partida e o debate no conselho um avanço significativo; mas é preciso saber retirar consequências. A bem do papel da Europa como um ator global com que o mundo possa contar.
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