A cínica alegoria da Fé, da Esperança e da Reputação
"Tudo o que nos proporciona uma certa elevação em relação aos outros porque nos torna mais perfeitos, como, por exemplo, a ciência e a virtude, ou porque nos confere uma certa autoridade sobre eles, tornando-nos mais poderosos, como as honras e as riquezas, parece fazer-nos independentes em certa medida. Todos os que estão abaixo de nós nos temem e reverenciam; estão sempre prontos a fazer o que nos agrada para a nossa preservação, e não ousam prejudicar-nos ou resistir aos nossos desejos. (...) Assim, os homens preservam a sua reputação tanto quanto necessário a fim de viverem confortavelmente neste Mundo."
Nicolas Malebranche(Padre, Teólogo, França 1638-1715) in "Da Procura da Verdade"
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Seria de esperar que a desvirtuação da política, reduzida que foi à Finança nos últimos anos, estivesse já lembrada como grande responsável pelo interminável sofrimento a que estamos sujeitos; mas não. Entre a visita de Paul Krugman e a avaliação da troika, esta foi uma semana passada a especular levianamente sobre a hipótese de "Portugal correr bem". Este uso da "Pax Romana" - um conceito débil e empírico, estimulado pelo Imperador Augusto, e destinado a enfatizar e difundir a superstição de segurança e progresso de todos os povos dominados por Roma - não colhe. Precisamente porque o problema não nasceu na etnia, na cultura, ou na diversidade, mas na Política, no Poder e na insensibilidade. E se houver continuidade e solução, é nessa sede - Política - que se deve encontrar. Berlim e Lisboa deveriam saber isto; a reputação dos políticos cai, assim, de forma inversamente proporcional ao heroísmo dos povos.
A seca, severa ou extrema, afecta quase 70% do território nacional; em algumas leituras, é já 100% do território que está efectivamente em seca severa. Foi o mês de Fevereiro mais seco desde 1931, o que equivale a dizer que é o mais seco de sempre desde que há registos fiáveis. Assunção Cristas (ministra da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território), em pleno órgão de competência política, legislativa e de fiscalização da República - a Assembleia - alude à sua Fé quando questionada sobre a seca. É a reputação de mulher moralmente vertical e humanamente esperançada que nos deve, portanto, tranquilizar, quando a Sra. Ministra não tem outra experiência profissional que não a advocacia e a militância partidária, nem outro ímpeto político que não seja o auto-deslumbramento. Assunção Cristas demitiu-se do cargo, só que continua a receber ordenado e, pior, a ter poder sobre uma área estratégica e nevrálgica para a cada vez mais afastada hipótese do crescimento económico travar as crueldades a que temos assistido: a agricultura, as pescas, o território, o mar, enfim, o sector produtivo primário. Só mesmo um partido como o de Paulo Portas, habituado a gerir quase exclusivamente aspirações ao Poder pela reputação, para conseguir colocar uma ministra destas num cargo daqueles. O último pelo PP - mantenhamos a salvo a memória - tinha sido Luís Nobre Guedes, também ele advogado. Nos caminhos da reputação encontrou uma chatice, o Caso Portucale.
O desemprego atinge agora 14,8%; são os números de ontem do Eurostat, dia 29 de Fevereiro. Trata-se de um incremento de 5,7% no número de desempregados em dois meses, que atira a taxa anual para mais 0,8% do que no final do ano passado. Nos jovens, a esta violência de proporções bíblicas, soma-se ainda uma interminável precariedade; em casos como o meu, todas as instituições para quem trabalho ou trabalhei, desfrutaram de plena ilegalidade - nunca, em 14 anos de contribuições, recebi qualquer subsídio de férias ou sequer fui desonerado de pagar do meu bolso contribuição para a Segurança Social. Somos milhares assim, a fazer a mentira da Economia portuguesa, de uma taxa de desemprego que, mesmo em níveis incríveis, não chega para descrever a efectiva pobreza. Pedro Passos Coelho, uma espécie de Presidente do Governo, longe de um primeiro-ministro, esquiva-se habilmente; admite que o flagelo continuará, descarta-se das suas responsabildades várias, entre as quais está o acto de puro cinismo de ter convidado alguém como Santos Pereira para o cargo de liderar aquele ministério desta Economia.
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Portugal vive uma cínica alegoria de fé, esperança e reputação, permitindo-se sistematicamente que a superstição e a reverência lhe tolham o futuro. Não, não vai correr bem. Quando muito, recomeça, se os Partidos não atrapalharem; Deus queira, de facto, que chova.
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