Luís Pais Antunes lpa@plmj.pt 21 de Outubro de 2010 às 11:50

Há mais défice para além da vida…

É sabido que muitas das frases que ficaram para a História não correspondem integralmente ao que os seus autores realmente afirmaram.

Entre essas, está certamente a que foi proferida pelo então Presidente Jorge Sampaio no discurso que proferiu na Assembleia da República, em 2003, por ocasião da sessão comemorativa do 29.º aniversário do 25 de Abril. No imaginário de todos nós e em muito do que se escreveu desde então frequentemente aparece o "há mais vida para além do défice". No texto a realidade é outra: onde se diz "défice", lê-se "Orçamento". É verdade que a diferença pode não ser muito significativa, tendo em conta o contexto que então se vivia. Em todo o caso, seja qual for a palavra "escolhida" para ilustrar a frase que ficou para a História, aquilo que temos vivido nas últimas semanas, mais de 7 anos volvidos desde então, parece querer demonstrar o contrário: o Orçamento e o défice, bem mais do que em 2003, ameaçam aniquilar a nossa forma de vida…

Julgo que é, para todos, óbvio que vamos ter Orçamento (este, com maiores ou menores modificações) e que, pelo menos no papel, o défice vai ser reduzido em 2011. Não será (ainda?) desta que nos cortarão os financiamentos e que seremos colocados sob a alçada directa da "polícia financeira internacional". Mas parece-me também evidente que vamos chegar ao final do próximo ano ainda mais pobres e mais endividados do que já estamos.

PUB

Podia ser diferente? Poder, podia. Mas para isso era preciso ter feito vida de formiga e não de cigarra, sobretudo nos anos dourados da segunda metade da década de 90. Desde então, não só o problema se agravou, como os últimos anos foram de completo desvario, com o Governo a lançar tributos em catadupa, enquanto gastava alegremente e recorria a "inovadoras" soluções de engenharia financeira. Fiéis ao princípio de que uma imagem vale mais do que mil palavras, achámos que, com propaganda fácil (mas cara) e discursos tão optimistas quanto irrealistas, tudo se resolvia. De malabarismo em malabarismo, fomos pretendendo remendar o problema como quem dá sucessivas demãos de tinta fresca num automóvel corroído pela ferrugem. Quando demos por ela, já só lá estava a tinta…

Agora já só há espaço para as más notícias. Umas piores, outras nem tanto, mas em todo o caso más. A pior de todas é, contudo, a total ausência de sentido estratégico no caminho que nos é proposto. Corremos, mas ninguém parece saber para onde. Aumenta-se um imposto aqui (vários e muito, para ser mais exacto), cortam-se despesas ali (embora inexplicavelmente algumas se mantenham ou cheguem mesmo a crescer ao arrepio do que seria evidente), de forma a alcançar um número mágico (os 4,6%), mas no horizonte nada. Nem a mais pequena réstia de luz. Certezas, apenas uma: se não o fizermos já, cortam-nos o crédito com que alegremente temos vindo a endividar-nos e que nos permitirá ficar a dever ainda mais quando o final do próximo ano nos bater à porta …

Sobre o desígnio estratégico e as medidas necessárias para fomentar o crescimento económico, o Orçamento é de um mutismo exemplar. Sobre as metas que temos de alcançar e os passos para lá chegar, nada além do silêncio. Sobre o que temos de mudar para salvar o que ainda resta do Estado social, não se ouve uma palavra. Tudo ou quase tudo se resume ao aumento da carga fiscal e à necessidade de termos de emagrecer, numa réplica à já estafada história do "burro do espanhol" que morreu à fome quando finalmente se tinha habituado a deixar de comer.

PUB

Não deixa de ser curioso lembrar que, imediatamente após a célebre frase tantas vezes referida, o citado discurso de Jorge Sampaio acrescentava que "A economia é mais do que finanças públicas. O aumento do investimento, da produtividade e da competitividade da economia portuguesa é fundamental para o nosso futuro…". Essa frase não fez história. No seu lugar floresceu a desorçamentação, a vida airada e a engenharia financeira que irá onerar as gerações vindouras. Decididamente, há mais défice para além das nossas vidas…

Advogado

Assina esta coluna quinzenalmente à quinta-feira

Assina esta coluna quinzenalmente à quinta-feira

PUB
Saber mais sobre...
Saber mais opinião jornal negócios défice
Pub
Pub
Pub