João Soares da Silva 28 de Janeiro de 2015 às 10:29

Miguel Galvão Teles: uma luz que permanece entre nós

Fui aluno do Miguel logo no 1.° ano da Faculdade de Direito de Lisboa. Era uma figura única no corpo docente, um jovem assistente cool, que cativava os alunos com uma atitude próxima e descontraída e com o brilho da sua inteligência e discurso.

 

Fui aluno do Miguel logo no 1.° ano da Faculdade de Direito de Lisboa. Era uma figura única no corpo docente, um jovem assistente cool, que cativava os alunos com uma atitude próxima e descontraída e com o brilho da sua inteligência e discurso.

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Concluído o curso, tive a sorte - era o patrono que ansiava ter - de me aceitar como seu estagiário.

Foi depois meu sócio, omnipresente e fraterno, por mais de 30 inesquecíveis anos. Primeiro, durante 20 anos, numa pequena sociedade a dois, que, na sua generosidade e desprendimento, quis que fosse paritária desde início, não obstante a grande diferença de idades e de estatura. E seguidamente, há já mais de 10 anos, no entusiasmante projecto da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados, resultante da união de esforços com a sociedade fundada por João Morais Leitão (que, já afastado por doença da advocacia, quis ficar associado como sócio honorário) e pelo seu primo - como irmão - José Manuel Galvão Teles.

Toda a minha vida está, pois, desde há mais de 40 anos, ligada e marcada indelevelmente pela personalidade ímpar do Miguel Galvão Teles. Devo-lhe quase tudo e juntos fizemos quase tudo. São mais os momentos, os episódios, as recordações, do que alguma vez conseguiria contar. Corro, por isso, o risco de, por falta de distanciamento, não ser porventura a pessoa mais indicada para falar dele.

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Na nótula que incluí nos estudos em sua homenagem, em que participaram mais de 90 juristas nacionais e internacionais, deixei esta dedicatória: "A Miguel Galvão Teles, meu Mestre, patrono, amigo e sócio fraterno de muitas décadas e inspiração e exemplo de toda a vida".

Não saberia hoje escolher outras palavras.

Falar de Miguel Galvão Teles deveria antes de mais ser falar de um génio jurídico ímpar, de uma inteligência, um fulgor e profundidade assombrosos, de um ecletismo absolutamente único.

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Como civilista, com obra marcante ainda como aluno da Faculdade. Como constitucionalista, para além da vastíssima obra científica, teve papel determinante na transição constitucional decorrente do 25 de Abril. Como internacionalista, com obras de referência e actividade ao serviço de causas como a representação portuguesa no Tribunal de Haia no caso "Timor Gap". Como desbravador de caminhos no campo do direito societário, financeiro e dos valores mobiliários. Como figura cimeira da arbitragem, nacional e internacionalmente. Como cultor, ao mais alto nível, da Filosofia do Direito.

E deveria ser, ainda, falar do homem de elevados ideais éticos, políticos e cívicos, coerente toda a vida, no pensamento e na intervenção pública.

Hoje, porém, queria antes recordar uma sua faceta "interna".

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Além da impressionante inteligência abstracta, o Miguel tinha também uma apuradíssima inteligência prática, que pôs ao serviço da advocacia, com raro talento para percorrer e analisar todos os aspectos de um caso, definir rumos e orientações, encontrar e defender soluções com brilho e sentido de eficácia. De uma capacidade evidente de ver mais longe do que todos, mas sempre com uma desnorteante simplicidade e cordialidade, que arrastava o interlocutor até próximo de si (tão próximo quanto a distância de génio permitia) sem jamais o deixar diminuído pela dificuldade manifesta de o acompanhar.

Mas também deixou a sua marca como formador - diria até formatador - de advogados, como verdadeiro farol e inspirador dos advogados que consigo ou próximo de si tiveram a sorte de conviver e trabalhar.

Sempre com a porta do gabinete aberta, de simpatia e proximidade irradiantes para colegas e colaboradores, de um humor e gargalhada franca inesquecíveis, o Miguel adorava conversar, discutir, argumentar e chamar para trabalhar em equipa consigo advogados mais novos, a quem, ao mesmo tempo, impregnava dos valores e princípios elevados com que encarava a profissão de advogado.

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Com ele aprendi - aprendemos todos - que a aceitação do encargo sagrado de tomar sobre si a defesa de interesses alheios tem de prevalecer sempre sobre quaisquer aspectos da vida pessoal, não consente distracções nem desfalecimentos, não desculpa nenhum afrouxamento de zelo e empenho.

Com ele aprendi - aprendemos todos - que, por maior que seja a inteligência e a agudeza de análise, nada dispensa o esforço exaustivo, nada autoriza o contentamento ou complacência com um trabalho apenas bem feito, nada perdoa um apressado dar o trabalho como concluído, que há sempre mais um ângulo a analisar, mais um autor a consultar, mais um argumento a aprofundar, mais uma revisão de texto a perseguir, mais uma posição de estratégia a ponderar.

Com ele aprendi - aprendemos todos - que os casos de quem nos confia a defesa da vida, da honra ou do património não se tratam, vivem-se. Que os advogados não vendem horas, entregam parte de si próprios.

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E que esta exigência permanente de perfeição e excelência tem de ser sempre norteada pelos valores da integridade, da independência, da insubordinação a quaisquer prisões de espírito ou de interesses, da lealdade para com a justiça e os tribunais, do respeito pelos colegas e contrapartes, da recusa de expedientes ou jogos de influência.

Sendo solitário nas alturas do seu génio (que por vezes o fazia parecer distante ou alheado, como nas frequentes vezes em que numa reunião, estivesse quem estivesse e por mais solene que fosse, se levantava e passeava pela sala, enredado nos seus pensamentos), o Miguel era também um homem, voltado para os outros numa casa de advogados, com genuíno prazer e dedicação na partilha, na transmissão, na difusão e no enraizamento do seu saber e dos seus princípios de grande advogado.

Jamais posso esquecer a alegria com que frequentemente, após conversa ou trabalho com advogados jovens, me dizia, com um brilho nos olhos: "João, vamos ter aqui mais um grande advogado".

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Essa marca que nos imprimiu ao longo dos anos não vai desaparecer.

Todos somos substituíveis. O Miguel, infelizmente, não era. Não devia ter sido ele a deixar-nos.

Mas a luz com que nos inundou permanecerá.

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