O mito do unicórnio e o caminho europeu - Parte I
Entre o capital que se queima e o conhecimento que se partilha, Portugal pode provar que a verdadeira inovação nasce da cooperação.
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Vivemos num tempo em que o sucesso das empresas parece medir-se mais pela sua valorização financeira do que pela sua utilidade social. As manchetes celebram as chamadas “startups unicórnio”, que atingem valorizações de mil milhões de dólares antes mesmo de gerarem lucro, como se fossem o novo modelo universal de progresso. No entanto, muitas dessas empresas não resistem ao próprio brilho. Como estrelas cadentes, atravessam o céu mediático a grande velocidade, queimando não apenas capital e confiança, mas também pessoas, talento e conhecimento. O que resta, muitas vezes, é um vazio de promessas falhadas e equipas exaustas, numa cultura empresarial marcada pela ilusão de crescimento sem limites.
Nos Estados Unidos, esse modelo prospera porque o capital circula em abundância e o investimento público atua como o grande estabilizador invisível. O Estado, embora tantas vezes apresentado como mero espectador, intervém em cada etapa decisiva, seja através de contratos governamentais, benefícios fiscais ou garantias implícitas. Mesmo os gigantes tecnológicos que simbolizam o empreendedorismo americano devem parte substancial do seu sucesso à presença discreta, mas constante, do poder público. É um sistema que socializa o investimento e privatiza o lucro, escondendo sob a retórica da meritocracia uma dependência estrutural profunda.
A Europa, por seu lado, construiu um tecido económico mais cooperativo e paciente, sustentado em políticas públicas, investigação científica e parcerias de longo prazo. Aqui, a inovação tende a nascer dentro das universidades e das instituições de investigação, a amadurecer em redes de colaboração e a transformar-se em soluções concretas e duradouras. Este ritmo, que por vezes parece lento, é, na verdade, uma expressão de maturidade, pois procura equilibrar o desenvolvimento económico com a coesão social e o valor do conhecimento. Ainda assim, o modelo europeu enfrenta limitações, porque lhe falta muitas vezes a escala financeira e a agilidade que o tornariam mais competitivo e visível no panorama global.
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Mas há setores onde essa forma de fazer política industrial e científica provou a sua eficácia. A indústria espacial europeia é um exemplo claro disso, resultado de uma cooperação contínua entre Estados, indústria e ciência que tem permitido criar valor económico a partir de conhecimento partilhado e de investimento público consistente. A Agência Espacial Europeia tornou-se, ao longo das últimas décadas, um laboratório dessa abordagem: integra diferentes países e competências, gere programas conjuntos e forma gerações de empresas e especialistas num ambiente que privilegia o rigor técnico, a interoperabilidade e o interesse público. Foi nesse contexto que começou a consolidar-se uma rede de pequenas e médias empresas europeias, apoiadas pela ESA e pela sua rede de incubadoras, que demonstram como é possível crescer sem recorrer à especulação financeira, transformando conhecimento científico em valor económico e social.
Essa rede deu origem a um ecossistema diversificado, com atores distribuídos ao longo de toda a cadeia de valor, do desenvolvimento de infraestruturas digitais à criação de serviços que transformam dados de satélite em informação útil para a gestão de riscos, a resposta a desastres, a monitorização ambiental ou o planeamento territorial. Estes modelos de cooperação demonstram o potencial humanista da tecnologia espacial e a maturidade de um sistema europeu que mobiliza conhecimento em benefício comum.
O rigor dos processos e a normalização dos procedimentos exigidos pela Agência criaram as bases de uma economia de dados de Observação da Terra sólida e exportável, avaliada em cerca de mil e quinhentos milhões de euros por ano na Europa, quase metade do mercado global. Este modelo, assente em qualidade e continuidade, demonstra que é possível crescer de forma sustentável sem depender de investimento especulativo. Através de redes colaborativas e de partilha tecnológica, a Europa tem desenvolvido um tecido produtivo que alia conhecimento científico, competência técnica e visão de longo prazo, transformando o progresso num processo cumulativo em que o conhecimento se converte em bem coletivo.
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A escassez de capital, tantas vezes vista como limitação, pode ser transformada em vantagem. Ao evitar o desperdício, incentiva a partilha de recursos, o planeamento cuidado e o crescimento sustentado com base na confiança. Esta característica, associada a uma cultura de proximidade e de colaboração, cria um terreno fértil para uma economia baseada na inteligência coletiva e na responsabilidade social. Paradoxalmente, é essa falta de abundância que obriga à eficiência e à articulação entre parceiros, tornando a cooperação não apenas uma escolha ética, mas uma necessidade económica.
Portugal tem hoje condições únicas para aprofundar este modelo. O país combina dimensão humana, talento científico e uma visão estratégica que privilegia o valor do conhecimento sobre a lógica do capital rápido. O dinamismo do setor aeroespacial, visível na procura crescente por formações em engenharia e ciência de dados em toda a Europa, reflete essa transformação mais profunda: uma geração de jovens qualificados que vê no espaço e na observação da Terra não apenas um domínio tecnológico, mas uma oportunidade de construir futuro coletivo. A sua posição geográfica e a sua língua conferem-lhe um papel natural como ponte entre a Europa, a América Latina e África, uma ideia tantas vezes repetida que, por vezes, soa a chavão, mas que vista de fora revela-se mais verdadeira do que se reconhece internamente. Ao mesmo tempo, começa a atrair profissionais e investigadores que procuram contextos mais abertos e cooperativos, onde a inovação tecnológica possa traduzir-se em oportunidades concretas de criação de valor e em novas formas de colaboração baseadas no conhecimento.
Para quem vive e trabalha no estrangeiro, esse movimento é particularmente visível: Portugal tornou-se um território fértil para quem pretende investir em conhecimento e estabelecer pontes entre ecossistemas. É nesse espaço atlântico, plural e cooperativo, que poderá consolidar-se uma nova etapa de desenvolvimento, uma que alia o saber acumulado fora de portas à energia criativa de quem quer construir futuro no país.
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O mito do unicórnio talvez continue a dominar o imaginário económico, mas a Europa mostra que há outro caminho possível, o de uma inovação que cresce devagar, solidamente, e que mede o seu sucesso não pelo capital que atrai, mas pelo conhecimento que partilha.
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