Para falar de Sidónio Muralha
Durante o Natal, os jornais de então publicavam festas e festarolas promovidas por empresas e companhias. O grande formato do "Diário de Notícias" e de "O Século", em Lisboa, e de "O Primeiro de Janeiro", "O Comércio do Porto" e "Jornal de Notícias" permitia a inclusão de imensas fotos com textos apropriados. A maioria dessas notícias era paga pelas empresas, mas havia outras que funcionavam como compensação a favores e a jogos de interesses entre as administrações daqueles jornais e as das empresas. Muitas vezes, eram jornalistas destacados para esses serviços. Não havia recalcitrantes: as coisas eram assim mesmo, e nem passa pela cabeça dos jovens profissionais os vexames por que passavam os velhos jornalistas encarregados daquelas e de outras tarefas semelhantes.
As lutas surdas, as resistências morais fazem parte de um honroso historial, que permanece oculto, dissimulado ou esquecido das gerações mais novas. Eu sei que, como em todos os sectores da sociedade portuguesa, os fenómenos de regressão estão a caminho e chegam a ultrapassar, em indignidade, o que, outrora, os patrões obrigavam os jornalistas a fazer. A obrigatoriedade não estava à vista, bem entendido: era a ordem rotineira das coisas que determinava a infâmia. A resistência, porém, existia; e, não raro, os conflitos de consciência ética atingiam fases extremamente conflituosas.
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Conheci profissionais de Imprensa altamente qualificados porém esmagados pelas circunstâncias políticas sob as quais viviam e exerciam as suas funções. O fascismo não só prendeu, assassinou, homiziou, atirou para o degredo e para a morte centenas, certamente milhares de portugueses - o fascismo liquidou a capacidade de realização profissional e criadora de jornalistas, professores, cientistas, escritores, artistas, cineastas. A Universidade foi varrida por uma onda de violência e discriminação, quando dezenas de professores (do melhor de que Portugal dispunha) assinaram um documento de crítica ao "Estado Novo." Um desses professores, Mário Silva, de Coimbra (pai do pintor do mesmo nome), foi obrigado, para ganhar a vida, a vender enciclopédias de porta a porta. Mas as histórias de dificuldades a que o fascismo coagiu portugueses de diferentes orientações, mas todos amantes da liberdade e da democracia, são inúmeras e, por igual, indignificantes e pavorosas.
Os instrumentos de coacção, repressão e constrangimento de que Salazar se serviu, para dominar um povo, foram, de facto, eficazes; mas não conseguiram liquidar a ânsia de liberdade e a coragem inaudita de quem se lhe opôs. A Imprensa censurada e vigiada, a literatura e a cultura em geral amordaçadas, perseguidas e manietadas existiram num quase milagre de persistência e de honra.
Lembrei-me, agora, nesta quadra de um belíssimo poema de resistência, composto por Sidónio Muralha (1920-1986), um dos grandes nomes do neorealismo, cuja vida é um percurso fascinante e uma procura tenaz da liberdade e do sonho. O poema foi um grito de protesto a andou, de mão em mão, foi lido em associações e clubes de bairro, e estava naturalmente envolvido na luta mais geral em que os melhores de nós se comprometeram. Ei-lo:
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Hoje é dia de Natal E o jornal fala dos pobres Em letras grandes e pretas Traz versos, historietas, E traz retratos também Dos bodos, bodos e bodos Em casas de gente bem. Hoje é dia de Natal Mas quando será de todos?
E o jornal fala dos pobres
Em letras grandes e pretas
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Traz versos, historietas,
E traz retratos também
Dos bodos, bodos e bodos
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Em casas de gente bem.
Hoje é dia de Natal
É uma poesia de combate, instrumental e destinada a obter efeitos imediatos. Era a voz indomável de um poeta hoje lamentavelmente esquecido, cuja vida foi uma entrega absoluta aos outros e à batalha contra o fascismo. Sidónio Muralha, filho do jornalista socialista Pedro Muralha, e irmão do actor Fernando Muralha, foi uma das figuras mais decentes e íntegras que conheci. Depois de Abril, conversei-o várias vezes e entrevistei-o para o semanário "o ponto", de que fui fundador. Muralha tinha publicado vários livros de literatura infantil, tivera de fugir de Portugal, com o seu amigo de sempre, o escritor Alexandre Cabral, instalara-se no Congo Belga até que se fixara no Brasil, onde casara com uma senhora que se lhe devotara.
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Estas memórias afectuosas apenas desejam homenagear, em Sidónio Muralha, todos aqueles que enfrentaram, com a valentia das convicções, na luta directa, na militância partidária, ou através das palavras, a brutalidade de um tempo que alguns desejam fazer esquecer.
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