Nicolau do Vale Pais 05 de Agosto de 2011 às 11:58

Rosa e o medo do escuro

Em 1972, diziam-me na rua para voltar para casa, que era lá o lugar das mulheres, e que o desporto era para os homens"

Em 1972, diziam-me na rua para voltar para casa, que era lá o lugar das mulheres, e que o desporto era para os homens", relata à cadeia internacional ESPN, com um sorriso pacificador nos lábios por, de lá para cá, ter visto crescer o País que a viu nascer, a 29 de Junho de 1958, no Porto; hoje, está consagrada como uma das maiores atletas mundiais de todos os tempos e como um carinhoso e despreconceituoso ícone da cultura portuguesa.

Na Foz, onde cresceu, diz-se que começou a correr pelas vielas com medo do escuro; tinha a natação e o ciclismo como primeiras paixões, mas por razões de ordem económica, dedicou-se ao atletismo. Primeiro no Futebol Clube do Porto e, mais adiante, em 1981, no CAP - Clube de Atletismo do Porto, onde permaneceu toda a carreira.

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Em 1982 venceu a sua primeira Maratona, na primeira prova feminina oficial da distância. Simbolicamente, o feito foi alcançado percorrendo o mesmo traçado que o soldado Filipíades terá palmilhado no séc. V a.c., para anunciar aos compatriotas gregos a vitória sobre Tebas na batalha de Maratona, preparando Atenas para um eventual ataque revanchista dos Persas (*). Rosa Mota sagra-se ali campeã da Europa, e os sucessos não mais pararam para uma das atletas com mais títulos de sempre: na primeira maratona olímpica em que participa - Los Angeles, USA, 1984, primeira prova feminina da especialidade nos Jogos - conquista a medalha de bronze. Em 1985 vence em Chicago (USA) com 2h 33min 29s; em 1986 renova o título europeu e em 1987 torna-se campeã mundial, nos Campeonatos do Mundo de Atletismo de Roma. Já em 1990, regressa a Boston para, pela terceira vez, vencer a prestigiada prova em circuito urbano; ainda nesse ano, em Split, na Croácia, consegue novo e emocionante título europeu, batendo num inusitado "sprint" final a russa Valentina Yegorova por 5 (!) segundos de vantagem. Venceu a São Silvestre de São Paulo, Brasil, por seis vezes consecutivas (1981-1986), e outras prestigiadas provas da Maratona, como Tóquio ou Londres. Em 2004, Rosa Mota promoveu a maior corrida feminina alguma vez realizada em Portugal, juntando um pelotão de dez mil mulheres, correndo numa acção contra o cancro da mama.

Tenaz, procurou no estrangeiro exemplos para seguir, como o da norueguesa Grete Weitz (falecida prematuramente em Abril passado); somou-lhes um carácter inconfundivelmente seu, na sua capacidade de superação, fosse da fisiologia (Rosa Mota venceu a asma e a ciática), fosse daqueles que a diminuíam gratuitamente, fechados no seu próprio medo, nos longínquos anos 70. E depois do bronze conquistado atrás de Weitz nos Jogos Olímpicos de Los Angeles (1984) entraria para a História, vencendo a Maratona Feminina em Seul, Coreia do Sul, em 1988. "Os maratonistas gostam de dizer que a última maratona é sempre a melhor, mas esta, arre!, parecia que nunca mais chegava o dia...", confidenciou sobre o seu ouro olímpico, depois de uma preparação exímia realizada no Colorado, nos Estados Unidos, pelo génio discreto do seu treinador de sempre, José Pedrosa. Rosa Mota superou-se e, com precisão e força devastadoras, executou o plano: ao quilómetro 38, descolou para vencer a disputadíssima prova em 2h 25m 39s, com apenas 14 segundos de vantagem sobre a segunda classificada.

Os reaccionários, cegos do preconceito, tinham-se enganado: desporto é com ela. Vencer é para quem não tem medo do escuro.

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(*) Consta, também, que as mulheres de Atenas tinham ordem para matarem os seus filhos e se suicidarem em seguida, em caso de ausência de notícias por mais de 24 horas o que, tendo a batalha durado mais do que o previsto, tornou o contra-relógio e a morte por exaustão de Filipíades ainda mais dramáticos.

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