Baptista Bastos b.bastos@netcabo.pt 31 de Maio de 2013 às 10:07

Tempo de sordidez

Dizem que Roma não paga a traidores mas as evidências da vida anunciam exactamente o contrário. Ser decente corresponde, na nossa sociedade, a uma situação cada vez mais rara.

Não tenho por hábito e formação moral e cultural interessar-me pelo passado daqueles que circunstâncias várias colocaram no galarim. Mas fico um pouco incomodado quando assisto a preopinantes que moralizam, sobretudo nos meios de comunicação, sobre aqueles que, por uma razão ou por outra, não abandonam a batalha que se trava contra uma ideologia averiguadamente reaccionária e maléfica.

Alguns, muitos desses artistas foram, ainda não há muitos anos, militantes acrisolados da "extrema-esquerda", contra o que designavam de revisionistas, sociais-fascistas ou mesmo de traidores. Embora me repugne levemente quem muda de carril, não atribuo excepcional importância a esses que tais, mas estou sempre de sobreaviso. Rendidos aos prestígios do "mercado" e à música das sereias do neoliberalismo, arranjaram bons lugares e bons vencimentos no Estado, nos jornais e nas televisões. Dizem que Roma não paga a traidores, mas as evidências da vida anunciam exactamente o contrário. Ser decente corresponde, na nossa sociedade, a uma situação cada vez mais rara.

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Claro que há dissensões extremamente dolorosas para quem as pratica ou praticou. Conheço casos. Basta ler a "Autobiografia" de Mário Dionísio, homem e intelectual incomum, para se atentar no facto de que, às vezes, a divergência, a separação, o afastamento são necessários para se manter a sanidade mental. Dionísio, grande ensaísta, teorizador do neorealismo, pintor, contista fora do vulgar pelas propostas feitas ["O Dia Cinzento", "Monólogo a Duas Vozes"], romancista inovador ["Não há Morte nem Princípio"], é um dos exemplos dessa grandeza do que sai, mas não trai nem abandona os imperativos de uma luta. Mas ele era de outra têmpera, e a consciência desiludida nunca seguiu outro caminho que não aquele julgado o mais justo. Com frequência vou ler os livros e as cartas (possuo algumas, e alguns bilhetes) do extraordinário autor de "A Paleta e o Mundo", a fim de me recauchutar e defender contra as misérias que por aí se editam. Seria bom que muitos dos preopinantes faladores nas televisões e escrevinhadores na Imprensa frequentassem aqueles que deram fisionomia à pátria moral e cultural quando tudo parecia irremediavelmente perdido.

Chega a ser sórdido o comportamento desses abjuradores, tentando caucionar a sua perfídia, com a falaciosa alegação de que "eram muito novos" quando militavam nos agrupamentos de extrema-esquerda. Seriam. Mas nada justifica, a não ser a nojeira de se renegarem, dos que, hoje, terçam armas e palavras contra os que se mantêm noutro campo, defendendo valores opostos e outros padrões de vida. Há semanas li, de Nuno Júdice, uma expressiva novela, "Implosão", na qual o autor aborda a mudança de bandeira como uma particular dissência moral. Recomendo a leitura deste belo texto, que não beneficiou do rataplã da crítica nem os favores de uma imprensa mais inclinada a elogiar a banalidade.

A abjuração tornou-se, neste tempo infausto, uma coisa vulgar. Ainda não há muito, era objecto de desprezo e os seus praticantes nem dos patrões eram aceites. O totalitarismo do pensamento único, tão abjecto como qualquer outro, vigora na sociedade portuguesa. Quem não está com "eles" é objecto de perseguição, da conjura do silêncio, da omissão e da exclusão. Os casos são vários e múltiplos. E conheço-os a quase todos. Por duas ou três vezes escarmentei alguns desses, mas, por salubridade, passo ao lado.

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Há dias, um deles bolçou infâmias acerca de uma sindicalista, varejando a vida dela num escrutínio asqueroso. Soube do assunto porque um leitor me alertou, através da net, porquanto não frequento, há anos, o periódico no qual o mariola escreve. Chegámos a um ponto em que ter um passado dignificante, um trabalho honrado e uma actividade íntegra são apontados como reprováveis. Mas nem sempre os aparentes vencedores do momento são-no para sempre. E a memória de muitos permanece como um acto de vigilância ética.

 

b.bastos@netcabo.pt

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