Instinto de sobrevivência
Mas também significativamente diferente da visão idealista e até romântico-revolucionária de alguns vultos do movimento federalista europeu (Hendrik Brugmans, Alexandre Marc, Altiero Spinelli, Denis de Rougemont) que tive o privilégio de ouvir enquanto aluno.
PUB
A "velha" Comunidade Europeia havia criado prosperidade e conseguido décadas de paz num continente em que a regra foi quase sempre a guerra. Tinha iniciado já o processo de alargamento das suas fronteiras a sul e preparava-se para se estender definitivamente a norte e a leste. Ouvi falar do "fim do mundo" e de crises insanáveis vezes sem conta. Convivi com os que queriam mais integração e mais federalismo, com os defensores do regresso às origens, com os que gostam do meio da ponte, com os totalitários, os saudosistas e os militantemente pessimistas, otimistas ou indiferentes.
Já regressado a Portugal, voltei a Bruxelas muitas vezes. Na primeira década deste século participei em largas dezenas de reuniões, formais e informais, de alto e de baixo nível. Assisti a discussões intermináveis, trocas de insultos, desaforos, visões inconciliáveis e frequentes ameaças de cataclismos iminentes. Lembrei-me frequentemente de Galileu e do seu "E pur si muove", de cada vez que o fim e o abismo eram anunciados. Mas também presenciei manifestações de júbilo, proclamações de vitória e desenhos de soluções - temporariamente... - "à prova de bala". Nessas alturas vinha-me à lembrança uma frase não tão famosa que saiu da pena de Nelson Rodrigues: "Daqui a duzentos anos, os historiadores vão chamar este final de século de 'a mais cínica das épocas'. O cinismo escorre por toda parte, como a água das paredes infiltradas".
PUB
Os últimos cinco meses (ou serão os últimos cinco anos?) não foram assim tão diferentes. Podemos - e devemos - ser críticos quanto à forma como o atual governo grego se apresentou em Bruxelas para discutir medidas que não quer. Podemos - e devemos - questionar a boa-fé negocial de quem discorda em absoluto das regras do clube a que pertence e quer subvertê-las. Mas não podemos ficar surpreendidos. A Europa gosta do conforto do meio da ponte. Quer continuar a ser a casa de todos, dando uma chave a cada um. Quer albergar a todos sob o seu chapéu, ainda que saiba que ele é demasiado estreito para que todos se possam abrigar. Gosta de tentar conciliar o que só por milagre é conciliável. Confia em excesso no voluntarismo e na força da persuasão. Tem uma fé quase inabalável de que as coisas acabarão por se resolver (ou, pelo menos, por dar a aparência de que estão a caminho de se resolver).
PUB
Este é o momento de todas as dúvidas, sobretudo porque a Grécia já só pode perder. O que pode variar é "apenas" a dimensão da sua perda e o impacto que tal poderá ter na UE e nos demais Estados-membros. Não há pior cenário numa mesa de negociações do que a derrota para ambas as partes. Mas não subestimemos o instinto de sobrevivência da UE, seja qual for o resultado da Cimeira de domingo. Com maior ou menor dificuldade, a Europa já nos habituou a conseguir encontrar um caminho, ganhar tempo, evitar o precipício e afastar demónios. Desta vez não será diferente.
Advogado
PUB
Este artigo está em conformidade como o novo Acordo Ortográfico
Mais Artigos do autor
Mais lidas
O Negócios recomenda