Maria de Fátima Carioca 30 de Julho de 2025 às 09:15

Cuidar do mundo e do coração

A minha proposta para estas férias é que sejam um tempo de aprendizagem em competências essenciais à nossa própria humanidade: olhar para ver, cuidar dos outros e do mundo e fazê-lo a partir do coração.

Os recentes incêndios recordaram-me que vivemos tempos em que os desafios ambientais (leia-se ambiente de forma integral) parecem cada vez mais complexos e urgentes. Mas, e se o verdadeiro problema não estiver apenas na natureza e sim dentro de nós? E recordei-me então de Gus Speth, ex-reitor da Faculdade de Estudos Ambientais e Florestais da Universidade de Yale, que afirmou um dia: “Pensava que os principais problemas ambientais eram a perda de biodiversidade, o colapso do ecossistema e as mudanças climáticas, mas estava errado. Os principais problemas ambientais são o egoísmo, a ganância e a apatia.” Speth acrescentou ainda que “para abordar essas questões, precisamos de uma transformação cultural e espiritual; e nós, cientistas, não sabemos como abordá-la”. Sim, não basta a ciência. A ciência é indispensável, mas não suficiente. E é aqui que entram as férias.

Por outro lado, vivemos numa sociedade ansiosa e acelerada. Uma das causas frequentemente apontadas é o acesso global à informação, seja ela de que cariz for. A globalização dos padrões de vida leva-nos a ter sempre mais e maiores expectativas sobre como deveriam ser as coisas na nossa vida, como a nossa vida deveria ser, como nós próprios deveríamos ser. No fundo, todos gostávamos de ser como desejamos, viver a vida que desejamos, que tudo acontecesse como pensamos e desejamos. É próprio da natureza humana. Mas o desenvolvimento tecnológico e, em concreto, as redes sociais fizeram com que fossemos cada vez mais exigentes com o mundo e com a vida e isso, por um lado, produz um choque com a realidade duma magnitude infinitamente maior do que era habitual e, por outro lado, empurra-nos para uma busca incessante por atingir objetivos, alcançar metas, conseguir resultados de todo o tipo. O que acontece então é que esta desilusão é nociva e esta busca é desgastante.

PUB

Sinais dos tempos: esta atitude encaminha muitas pessoas para a ociofobia, ou seja, o medo irracional de ter tempo livre ou tempo vazio de atividades. Paradoxalmente, hoje, para muitos, parece ser muito mais difícil não fazer nada do que ter uma agenda cheia. Esta necessidade de estar continuamente a fazer alguma coisa é um mal da sociedade atual e, nas férias, pode traduzir-se num ativismo cujo objetivo último é preencher o tempo livre, ao ponto de se chegar ao fim do verão com tanto ou mais stresse do que quando se começou. Também por este motivo, é bom aproveitar as férias para desacelerar. No dia a dia damos tanto valor a sermos úteis, produtivos e comprometidos, que esquecemos que a pausa, a serenidade, a contemplação, o próprio tédio e o dolce fare niente” também são úteis, saudáveis e socialmente necessários. E também aqui entram as férias.

As férias são mais do que uma simples pausa na rotina, são uma necessidade e um tempo de grande riqueza. É o momento de desligar o despertador e, de forma simples, parar, respirar e recarregar energias e entusiasmo. Seja viajando, descansando em casa, sentindo o sol na praia ou ouvindo os sons da natureza na montanha, convivendo com a família e conversando com amigos, (re)descobrem-se atividades e hábitos realmente valiosos. E tudo isto ajuda a desacelerar, a entender e a aprofundar a nossa relação com a beleza do que nos rodeia e que muitas vezes nos passa despercebida na correria quotidiana. Sim, há momentos em que parar significa avançar e a beleza pede-nos isso mesmo. 

A minha proposta para estas férias é que sejam um tempo de aprendizagem em competências essenciais à nossa própria humanidade: olhar para ver, cuidar dos outros e do mundo e fazê-lo a partir do coração.

PUB

Dizia Merleau-Ponty, o filósofo da perceção: “É verdade que o mundo é o que vemos. Contudo, temos de aprender a vê-lo.” E como se aprende a ver? Como se desenvolve qualquer outra competência: com exercício e treino até que a adquiramos e utilizemos espontaneamente. Assim, aprende-se a ver, antes de mais, olhando e, depois, prestando atenção. Ver é, sobretudo, não passar pelas coisas e pelas pessoas sem nos darmos conta da sua existência. É não ser indiferente. É dirigir o olhar e prestar atenção à nossa volta, àqueles com que nos cruzamos, à paisagem que a natureza nos oferece e aos acontecimentos que vivemos. E ser capaz de o fazer de forma aberta e desinteressada, ou seja, aberta ao que os outros e o mundo nos mostram sem enevoarmos a visão com ideias ou julgamentos pré-concebidos. Por último, ver é ver também o que não se vê: a beleza subjacente à realidade.

Olhar o belo, fazer a experiência da beleza é algo que nos convida a determo-nos, a refletir, a respeitar a natureza, presente nos outros e no mundo e, quem sabe, sermos levados a mudar alguma atitude face a ela mesma.

Muito se fala hoje em dia de práticas sustentáveis, contudo se estas práticas partem de objetivos colocados por pressão social e não interiorizados, com o tempo, revelam-se demasiado árduas e superficiais. Pelo contrário, admirar a beleza permite cultivar uma interioridade sensível, capaz de perceber o valor do que nos circunda, refletir como vivemos e agir com responsabilidade. Admirar a beleza imprime um desejo íntimo de compromisso e respeito, origina uma força e uma motivação que nos impulsiona a cuidar de cada um e de tudo em que ela mesma se revela. Admirar a beleza transforma-nos em cuidadores do mundo que é nosso e que sonhamos vir a ser dos nossos netos.

PUB

Cada gesto de cuidado, por menor que pareça, contribui para uma nova realidade social e ambiental. Quando (nos) educamos para o cuidado, estamos a plantar sementes de esperança e de mudança. E essa mudança começa dentro de cada um de nós, vendo com o coração, em cada um e em cada momento, o essencial que é invisível aos olhos, como dizia Saint-Exupéry. Cuidar do mundo, cuidar da vida começa com o cuidado do coração. Porque isso só se faz, sustentadamente, com um coração atento, generoso e disposto a cuidar.

Boas Férias!

Pub
Pub
Pub