Alice, Minha Irmã Alice
Há poemas que se confundem com a vida de quem os escreve. E há peças de teatro que os contam a ambos, aos poemas e à vida, em perspectiva. É assim em "Toda a cidade ardia", agora no Teatro Aberto, em Lisboa.
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A protagonista é a escritora e jornalista Alice Vieira, embora a peça lhe mude o nome para tornar a sua história mais universal, transformando-a numa espécie de exemplo neutro mas, ainda assim, inspirador.
Marta Dias, que assume a encenação, foi beber a obras como "Dois Corpos Tombando na Água", "O Que Dói às Aves" ou "Armários da Noite" para construir um texto que é, em si mesmo, o poético resultado de uma vontade antiga. As palavras são embrulhadas com cuidado na construção de cada cena e, mesmo com o aparato cenográfico por vezes ruidoso, nunca perdem a sua centralidade.
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O registo é cronológico - da infância aos dias de hoje - para que a compreensão seja mais fácil. Ana, a personagem principal, é dividida em duas, entre Ana Guiomar e Sílvia Filipe, ficando sempre uma delas como um narrador, como alguém que vê a sua própria história à distância.
"Toda a cidade ardia" peca, talvez, pela demora e por alguns quadros que se tornam repetitivos nas intenções que transmitem. Não fossem as duas revoluções retratadas - elas próprias fortes rasgos na sequência narrativa - e as duas horas e meia de peça poderiam mostrar-se cansativas.
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O título fala de uma cidade. Não é a Lisboa que marca grande parte da história, avise-se. É Paris, onde Ana - ou Alice, sabemos ser o mesmo - vive o Maio de 1968 e a forma como esses dias marcam o futuro. "Só as acções são revolucionárias", ouve-se. Uma história de amor - representada entre os actores Ana Guiomar e Vítor D'Andrade - quebra-se na capital francesa. O regresso às origens torna-se inevitável.
Segue-se a rotina das redacções e dos jornais marcados pela censura - brilhantemente representada por umas gigantes luvas azuis - e, como esperada, a noite da revolução, conhecida através de um telefonema. Depois, em cena, os cravos são literalmente varridos. E tudo entra no registo do lar.
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O marido editor, para representar Mário Castrim, o primeiro livro, os filhos, a doença, a perda. A história torna-se mais banal, longe do registo dos heróis, contrariando o universo das obras infantis que Ana escreve. É uma mulher comum aquela que é capaz de ditar sonhos de milhares de crianças pelas suas palavras. Diríamos, os da própria encenadora.
Predominam em palco os símbolos para um tempo que passa, do piano iluminado - a luz sempre tão importante quando Marta Dias quer criar uma atmosfera de intimidade - aos ramos das árvores que crescem em direcção ao céu. E, no meio desses símbolos, um relógio em que as horas avançam ao contrário. Tão misterioso.
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Nesse retrocesso dos ponteiros, a história de amor de Paris, que parecia ter ficado lá atrás, regressa, como um fantasma que esteve sempre ali e ganha forma. É outra a idade, é outra a forma de viver o que parecia perdido. E a história volta a ganhar um interesse súbito quando tudo parece já conhecido. "Já não temos vinte anos." Mas teremos sempre Paris.
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