Legenda: Participantes da mesa-redonda sobre IA promovida pela Atos. Da esquerda para a direita: Pedro Gomes Mota, Nélio Marques, Anthony Atherton, Octávio Oliveira, Catarina Ceitil, Carlos Lopes, José Pedro Neto, Daniel Luz, e Álvaro Garcia.
A transição digital portuguesa entrou numa nova fase. A Inteligência Artificial (IA) deixou de ser uma promessa para passar a integrar o quotidiano das organizações. O desafio já não é apenas técnico, mas cultural e ético. Como criar confiança, assegurar governança e medir o impacto real da tecnologia. A sua implementação exige responsabilidade, investimento em literacia e uma gestão eficaz da mudança.
Tanto o setor público como o privado enfrentam desafios distintos, mas partilham uma ambição comum, adotar uma estratégia AI-first e garantir que Portugal não perde o ritmo da inovação.
Este foi o ponto de partida para o debate sobre Inteligência Artificial promovido pela Atos, que reuniu empresas tecnológicas, energéticas, industriais e entidades públicas num país que procura equilibrar a inovação com a regulação.
Octávio Oliveira, country manager da Atos Portugal, resume o momento atual. “O discurso sobre a inteligência artificial passou da fase do entusiasmo para a da preocupação.” Há um ano, acrescenta, falava-se muito e fazia-se pouco. Hoje as empresas atuam com mais prudência. “O ponto em que estamos pode resumir-se a uma palavra, confiança. Sem a confiança dos utilizadores, das empresas e da sociedade, nenhuma tecnologia pode ser adoptada e massificada com sucesso.”
Para Álvaro García López, diretor do Artificial Intelligence Center of Excellence da Atos Ibéria, o desafio é estrutural. “Todas as organizações estão a apostar em IA, mas muitas ainda se perdem em provas de conceito sem retorno. O futuro passa por programas transformacionais, orientados a valor, com estratégia clara e governança definida.”
Daniel Luz, manager da Atos IT Solutions and Services, reforça a importância de testar internamente antes de escalar. “Criámos um centro de excelência centrado em IA e produtividade, mas com consciência ecológica e social. A credibilidade começa dentro de portas.”
A base tecnológica e o caso Galp
Na Galp, a preparação para a adoção da IA começou antes da tecnologia. Catarina Ceitil, Chief Information Officer (CIO), explica que a energética trabalhou as fundações tecnológicas e de dados antes de avançar para casos de utilização práticos. “A inteligência artificial precisa de processos estruturados e de sistemas sólidos para funcionar.”
A empresa modernizou os sistemas core e criou uma camada de dados com uma governança robusta. “Já passámos a fase das provas de conceito. Temos projetos em curso desenhados para aumentar a segurança e o desempenho de ativos e operações, nomeadamente na refinaria de Sines através de manutenções preditivas, nos parques solares na Península Ibérica e no trading de eletricidade. O foco agora é a produtividade e o valor. Queremos que cada iniciativa tenha retorno e esteja alinhada com o AI Act”, afirma a CIO.
A Galp prepara-se para acelerar em 2026, num contexto em que a regulação europeia será mais exigente. “A cultura de responsabilidade e o uso ético da IA fazem parte integrante do nosso modelo de gestão”, sublinha Catarina Ceitil.
O setor público e o desafio da escala
No Instituto de Informática da Segurança Social, a prudência tem guiado a adoção tecnológica. José Neto, vogal do Conselho Diretivo da instituição, recorda que a utilização de ferramentas de automação começou em 2020. “Avançámos de forma conservadora, mas entrámos agora na fase da transformação completa dos processos.” O objetivo é aliviar a carga administrativa e melhorar a experiência do cidadão. “Queremos tirar peso ao back office e oferecer serviços mais simples e personalizados. A IA vai ser essencial para aumentar a eficiência, combater a fraude e transformar a proteção social.”
Entre os projetos em desenvolvimento está a criação de uma cloud privada de IA, com um investimento de três milhões de euros. “O foco é a segurança dos dados e a transparência no tratamento da informação pública.”
Mobilidade e dados na Brisa
No Grupo Brisa a inteligência artificial é vista como um acelerador estratégico. Pedro Gomes Mota, Chief Data Officer (CDO) do grupo, explica que a empresa começou por investir em literacia e governança de dados antes de evoluir para machine learning. “Estamos a implementar a estratégia de IA com quatro eixos: excelência no cliente, eficiência operacional, amplificação de competências dos trabalhadores e segurança.”
Entre os projetos em curso está a utilização de modelos de machine learning para deteção de incidentes e o mapeamento de sinistralidade nas autoestradas. “Queremos chegar a zero acidentes. A IA está a ajudar-nos a antecipar riscos e a tornar as operações mais seguras.”
Indústria e competitividade global
Na Bondalti, a inteligência artificial é já parte da operação industrial. Nélio Marques, diretor de IT, Transformação Digital e Inovação, explica que a estratégia da empresa assenta em três eixos, ferramentas corporativas, projetos de negócio e enquadramento regulatório. “Usamos IA na cibersegurança, no planeamento logístico e na segurança em fábrica. A regulação europeia pode ser exigente, mas é também uma oportunidade para reforçar padrões de segurança.”
Para o responsável, a Europa enfrenta o dilema da competitividade. “Cumprimos mais regras do que os americanos e os chineses. E isso tem custos. O desafio é não travar a inovação nem limitar a competitividade das empresas europeias à escala global.”
Regulação e competitividade
A questão da regulação dividiu opiniões entre os participantes da mesa redonda promovida pela Atos. Para Catarina Ceitil, da Galp, o AI Act foi uma conquista que trouxe disciplina e transparência. “Sou pró-regulação. A obrigatoriedade de conhecer o que fazemos ajuda-nos a crescer de forma sustentável. Sem regras, a tecnologia seria perigosa, há impactos sociais e psicológicos que exigem limites claros.”
Nélio Marques defende, contudo, que a Europa regula em excesso, posição partilhada por Carlos Lopes, diretor de Sistemas de Informação da Prio. “A regulação não é global, mas o mercado é. A Europa está a perder ritmo”, afirma.
Anthony Atherton, responsável pela Siemens Portugal Tech Hub IT, reconhece que o debate sobre regulação e desenvolvimento tecnológico não é simples. “A verdade é que precisamos de uma base legal sólida que permita trabalhar e vender produtos num enquadramento claro. Sem regulação, instala-se o caos. Mas, ao mesmo tempo, uma regulação demasiado rígida pode travar o potencial e a velocidade da inovação.” O gestor considera essencial encontrar o ponto de equilíbrio. “Temos de compreender o que podemos e o que não devemos fazer, garantindo sempre que as nossas práticas estão dentro da lei.” Explica que na Siemens usam a inteligência artificial há décadas, desde os anos 70, sobretudo na área industrial, onde são uma das empresas com mais patentes e conhecimento acumulado na Europa. Para concluir o gestor compara o momento atual ao início da internet. “No início havia receio, pensava-se que muitos negócios iriam desaparecer. Mas o que aconteceu foi o contrário. Criou-se uma indústria gigantesca e novas oportunidades. Com a inteligência artificial será igual, só que muito mais rápido.”
Já José Neto, do Instituto de Informática, reforçou o papel da transparência no setor público. “Lidamos com dados sensíveis e decisões que afetam milhões. As pessoas têm de saber como e por que motivo as suas informações são usadas.”
Medir o impacto e o valor económico
Outro dos temas em destaque neste debate foi saber como se mede dentro de cada orgnização o impacto da IA. Um desafio que Daniel Luz, da Atos, observa que “a produtividade deixou de ser fazer mais com menos e passou a ser fazer melhor com mais qualidade”. A empresa avalia os resultados em métricas de velocidade, qualidade e adoção, não apenas em custos.
Pedro Gomes Mota sublinha a importância de traduzir ganhos tecnológicos em valor económico: “Sem indicadores, não há narrativa convincente”, enquanto Carlos Lopes, da Prio, acrescenta a dimensão energética. “Cada pesquisa tem um custo computacional. Saber quanto se gasta e quanto se poupa é crucial para medir o retorno real.”
Para Catarina Ceitil, nem tudo é quantificável. “Há um retorno intangível, o return on engagement. Negar o acesso à IA é como negar o acesso à internet. É uma ferramenta que amplifica as capacidades humanas.”
A dimensão humana da transformação
A tecnologia pode ser o motor, mas são as pessoas que definem a direção e a velocidade da ação. Na Bondalti, Nélio Marques reconhece que a mudança cultural é um processo gradual. “Temos colaboradores entusiasmados e outros que ainda olham para a IA com receio. É importante perceber que isto não substitui pessoas, é um processo de aprendizagem contínua. O custo de não transformar as pessoas é maior do que qualquer investimento tecnológico.” A IA é vista tanto como ferramenta de produtividade como de criatividade. Nélio Marques descreve colaboradores que a utilizam para automatizar processos e outros que a usam para criar. “Ambos estão certos. A IA ajuda-nos a fazer melhor e mais rápido, mas também a pensar diferente.”
Uma visão partilhada por Pedro Gomes Mota, da Brisa, que sublinha a importância da adaptação. “A IA vai potenciar o que já fazemos bem, mas também vai expor o que fazemos mal. É um processo de evolução cultural.” E acrescenta: “O maior ganho não é o tempo poupado, é a qualidade acrescida do trabalho. Estamos a aprender a medir produtividade em valor gerado, não em horas.”
No setor público, o Instituto de Informática tem procurado acompanhar esta mudança. José Neto destaca o esforço de capacitação interna e externa. “Temos de melhorar a qualidade da interação entre cidadãos e Estado. Isso exige redesenhar processos, formar equipas e criar competências. Não basta tirar pessoas do front office, é preciso transformar o back office.”
Também nas empresas privadas, o desafio passa por alargar a literacia digital a toda a cadeia de valor. Anthony Atherton, da Siemens, lembra que esta transformação deve envolver todos os intervenientes. “A literacia não é apenas interna. Quem usa tem de compreender o que está a usar. É uma mudança transversal.”
Na Galp, a aposta vai além da sensibilização. Catarina Ceitil explica que a formação é obrigatória. “Todos passam por programas de compliance e AI Act. Criámos AI Champions dentro das equipas para identificar casos de sucesso que promovam a adoção responsável.”
Daniel Luz, da Atos, salienta que o indicador de desempenho tem uma função pedagógica. “Devem servir para compreender como a tecnologia melhora o trabalho das pessoas, não para o controlar.”
Humanizar a tecnologia
Para encerrar o debate, o country manager da Atos, Octávio Oliveira, deixou uma reflexão sobre a relação entre tecnologia e humanidade. “Falamos muito de inteligência artificial, mas antes dela tem de vir a inteligência humana. O futuro não é fazer mais com menos, é fazer melhor com mais qualidade, e isso só é possível com talento e com confiança.”
O gestor acredita que o próximo passo será tornar a IA verdadeiramente humana. “Quando deixarmos de sentir que é artificial e passarmos a confiar nos resultados como se viessem de uma pessoa, teremos atingido a maturidade desta tecnologia. Até lá, o desafio é aprender a conviver com ela.”