A digitalização, a automação e a inteligência artificial estão a redesenhar o modo como as empresas planeiam, operam e distribuem. Mas, no centro dessa mudança, surgem desafios que vão muito além da tecnologia: a gestão e a valorização do talento humano.
Nos últimos anos, o setor logístico em Portugal tem acompanhado a tendência global de integração de sistemas inteligentes, automatização de processos e adoção de ferramentas analíticas. Contudo, esta evolução tecnológica está a expor uma nova fragilidade que é a falta de competências digitais e de perfis especializados. O desafio já não é apenas modernizar infraestruturas, mas garantir que as pessoas que nelas trabalham têm a capacidade de as operar, interpretar e fazer evoluir.
Para Nuno Gaspar, senior manager da unidade de consultoria da Capgemini Portugal, “a digitalização na logística e na cadeia de abastecimento deve equilibrar a automação com o desenvolvimento humano”. O especialista sublinha que a adoção de soluções de inteligência artificial deve complementar, e não substituir, a experiência humana, apoiando a tomada de decisões com dados e insights. “Modelos híbridos, com supervisão humana, garantem a flexibilidade e a empatia”, refere este responsável.
Essa abordagem, segundo a Capgemini, exige investimento contínuo na formação e literacia digital dos colaboradores, sobretudo em competências analíticas. “Está provado que sistemas personalizados e centrados nas pessoas aumentam a eficácia e o envolvimento das equipas”, acrescenta Nuno Gaspar, enquanto defende que a liderança humana continuará a ser essencial para alcançar as metas de sustentabilidade e resiliência nas cadeias de abastecimento. Ou seja, a automatização pode reduzir erros e custos, mas é a sensibilidade e o discernimento humano que asseguram a adaptação, a inovação e a confiança dentro das organizações.
Competências críticas para o futuro
A Capgemini tem vindo a trabalhar em programas de upskilling e reskilling em vários setores, e a logística não é exceção. “Há várias competências críticas para o futuro da logística em Portugal, em especial na transformação digital e na sustentabilidade”, afirma Nuno Gaspar.
Entre as mais relevantes estão a gestão digital da cadeia de abastecimento, a análise de dados e a inteligência artificial, fundamentais para decisões em tempo real e para o uso de digital twins e ferramentas de simulação. A par destas, ganham importância as tecnologias cloud, os conceitos de logística circular, a melhoria contínua e as metodologias lean.
No entanto, não basta dominar a tecnologia. “As soft skills, como a gestão da comunicação e dos stakeholders, são igualmente desenvolvidas nos nossos programas de formação”, sublinha o responsável. A nova logística precisa de profissionais com capacidade de adaptação, pensamento crítico e visão colaborativa.
Formar e requalificar
A APLOG – Associação Portuguesa de Logística reconhece que o talento é hoje um dos maiores desafios para as empresas portuguesas. Afonso Jubert Almeida, presidente da direção, reforça que a complexidade tecnológica exige equipas cada vez mais qualificadas.
“Um dos grandes desafios das empresas vai ser ter as suas equipas com formação especializada em cada um dos temas e softwares que vão utilizar”, confirma este responsável. Essa formação, acrescenta, deve começar logo na implementação de cada projeto.
A APLOG tem a formação como missão central, sendo a única entidade certificada pela ELA (European Logistics Association) em Portugal. Dispõe de programas modulares e formação à medida, adaptada às necessidades das empresas. “Os temas ligados à automação e à digitalização exigem cada vez mais formação especializada. As pessoas precisam de competências que lhes permitam responder aos desafios colocados pela introdução de novas tecnologias”, afirma Afonso Jubert Almeida.
Outra preocupação é a requalificação de recursos humanos, uma vez que a automação poderá reduzir a necessidade de mão de obra em certas funções. “As empresas terão de encontrar equilíbrio entre a eficiência tecnológica e a gestão humana, requalificando quem já está dentro das organizações”, defende Afonso Jubert Almeida.
Tornar a logística atraente para os jovens
A escassez de talento é também um problema de atração. O setor continua a ter dificuldade em captar jovens profissionais. Para Afonso Jubert Almeida, é fundamental começar pela base: “É preciso existir nas escolas profissionais um curso da área da logística que forme jovens que não querem ir para o ensino superior, mas que poderão ter um papel determinante em operadores logísticos, retalhistas e na indústria.”
Atualmente, essa formação é, muitas vezes, assegurada pelas próprias empresas. Contudo, o presidente da APLOG destaca que o setor tem forte potencial de empregabilidade e um perfil tecnológico cada vez mais moderno, o que deve ser mais bem comunicado. “A carreira em logística é bastante atrativa em termos tecnológicos e de oferta de emprego. É um setor que utiliza cada vez mais tecnologia e que vai ao encontro dos desafios que os jovens procuram”, acrescenta.
Hoje, várias universidades e politécnicos já oferecem licenciaturas e mestrados em logística, o que permite preparar uma nova geração de profissionais. O futuro, acredita Afonso Jubert Almeida, será de elevada procura: “É um setor em rápida evolução e com enorme necessidade de talento especializado.”
Descarbonizar sem travar a competitividade
Outro desafio que o setor tem pela frente é a reduzir emissões, mas sem perder eficiência. A pressão regulatória europeia – com o Green Deal e o pacote Fit for 55 – impõe metas exigentes de redução de emissões, que estão a transformar profundamente o setor. O desafio é reduzir a pegada de carbono sem comprometer a eficiência nem a rentabilidade das operações. Em Portugal, a resposta começa a ganhar forma com soluções tecnológicas e de processo que prometem acelerar a transição.
Segundo Nuno Gaspar, da Capgemini Portugal, a empresa tem vindo a apoiar operadores logísticos e industriais nesta transição através de uma abordagem integrada. “A Capgemini disponibiliza soluções de sustentabilidade específicas para o setor da logística que ajudam os clientes a cumprir as exigências regulatórias, mantendo a competitividade das empresas e dos seus negócios”, conta.
O especialista destaca três eixos essenciais: eficiência operacional, gestão de dados ESG e reformulação das operações e do produto. “As nossas soluções estão muito focadas nas emissões de Scope 3, que dominam a pegada de carbono na logística”, explica o responsável.
No plano tecnológico, o portefólio é vasto e reflete a transformação digital em curso no setor. “Além da inteligência artificial e do data analytics, com impacto no forecasting e na rastreabilidade do carbono, destacam-se as soluções de IoT e sensores inteligentes, a cloud computing, que permite escalabilidade e colaboração, e os digital twins, com foco na simulação e otimização das cadeias de abastecimento”, detalha Nuno Gaspar.
A Capgemini tem vindo a aplicar estas ferramentas em múltiplos setores. “No retalho, temos projetos que contribuem para a redução do desperdício alimentar, e na indústria automóvel apoiamos o desenvolvimento de veículos elétricos orientados para a mobilidade urbana”, acrescenta Nuno Gaspar.
Passos sustentáveis para as PME
Contudo, a realidade nacional é marcada pela predominância de PME logísticas, muitas das quais não dispõem de meios para grandes investimentos imediatos. A Capgemini propõe, por isso, uma estratégia “step by step”, assente em cinco pilares.
O primeiro é o aprovisionamento sustentável, incentivando a escolha de fornecedores com práticas ambientais responsáveis. O segundo assenta na aplicação de princípios lean, para reduzir desperdícios e consumo energético. O terceiro propõe a otimização da cadeia de distribuição, através da consolidação de cargas e uso de plataformas logísticas partilhadas.
Segue-se a aposta na transparência e na gestão do ciclo de vida dos produtos, aproveitando os sistemas existentes, como ERP e soluções de análise de dados, para rastrear emissões e monitorizar indicadores ESG. Por fim, o quinto pilar reforça a economia circular e a logística inversa, promovendo a reutilização de materiais e a recuperação de valor.
“A digitalização e a sustentabilidade são complementares. Soluções modulares permitem às PME começar com investimentos reduzidos e escalar progressivamente, com apoio em parcerias, formação e boa governação”, sublinha Nuno Gaspar.
Setor em transição
Também Afonso Jubert Almeida, da APLOG, reconhece que o setor está a dar passos firmes para mudar. “As empresas de logística já estão há bastante tempo a agir com diversas iniciativas ou boas práticas para reduzir a pegada ambiental”, assegura este responsável. A aposta em edifícios logísticos mais eficientes, com painéis fotovoltaicos e materiais sustentáveis, e o peso crescente da economia circular são algumas medidas a serem adotadas. “Muitas empresas levam muito a sério este tema e têm objetivos muito concretos nessa matéria”, diz Afonso Jubert Almeida.
Nos transportes, a mudança também já se sente. “Nas pequenas entregas, há um aumento muito significativo de viaturas elétricas, sobretudo nas regiões da Grande Lisboa e Porto. Algumas das principais empresas do mercado têm hoje quase metade da frota em viaturas elétricas, e prevê-se que até ao fim da década a grande maioria das viaturas sejam mais sustentáveis e amigas do ambiente”, aponta o mesmo responsável.
Além da substituição de frotas, há um papel crescente das ferramentas digitais. “Os TMS de última geração permitem um melhor planeamento das rotas, uma melhor ocupação e uma redução dos quilómetros em vazio”, explica o presidente da direção da APLOG. O dirigente defende, todavia, que a transformação exige políticas públicas eficazes, nomeadamente incentivos à renovação de frotas e ao desenvolvimento de infraestruturas de carregamento elétrico.