Órbita perde pedal em Lisboa e cai num buraco negro

A fabricante portuguesa de bicicletas viu a maioria dos seus trabalhadores a rescindirem por salários em atraso e a EMEL a rasgar um contrato de 23 milhões de euros. E há, pelo menos, um pedido de insolvência da empresa da Águeda metido por um credor em tribunal.
Rui Neves 13 de Abril de 2019 às 17:00

Os portugueses nascidos nos anos 70 devem lembrar-se da Órbita, que foi para muitos deles a marca da sua primeira bicicleta.

PUB

 

Com um nome inspirado no primeiro satélite enviado a Marte com sucesso, a empresa nasceu em 1971 em resultado da decisão da Miralago, a empresa-mãe, fundada em 1956, que começou por produzir pinhões de ataque e cremalheiras, produtos que na época não eram produzidas em Portugal.

PUB

 

"Achei que devia haver uma empresa que devia produzir toda a bicicleta, evitando que uma empresa estrangeira viesse fazer o trabalho que nos competia: fabricar, montar e distribuir", lembrou Aurélio Ferreira, o empresário que vendeu a Miralago/Órbita em 2015, numa entrevista dada, no ano anterior, ao programa Sucesso.pt, da SIC Notícias.

PUB

 

Entretanto, com a chegada da concorrência asiática, nos anos 1990 e 2000, a Órbita teve que dar ao pedal para não cair.

 

PUB

Até que, em 2012, assume posição de destaque na área da "Mobilidade Sustentável Suave" em Portugal, com o fornecimento integral de 220 Bicicletas e 38 parques para o maior projeto à data de uso partilhado de bicicletas - o Vilamoura Public Bikes.

 

Nesse ano, garantiu também o fornecimento de 150 bicicletas elétricas para o projeto Inovador de distribuição postal pelos CTT em todo o país.

PUB

 

No ano seguinte, no sistema de bicicletas partilhadas, ganhou o fornecimento para a cidade de Viseu, e em 2014 para Vila do Conde, estando hoje presente em outras cidades, como na terra natal Águeda, Oliveira de Azeméis ou Bragança.

 

PUB

Antes, em 2011, um seu cliente em França adjudicou-lhe a colocação de 22 mil bicicletas elétricas nas ruas de Paris. Atualmente, a nível internacional, a Órbita pedala também em muitas outras cidades de países como Espanha, Áustria ou Eslovénia.

 

Órbita com novos donos em 2015 e um contrato milionário e problemático em Lisboa 

PUB

 

Chegado a 2015, sem vislumbrar ninguém na família para dar continuidade à empresa, Aurélio Ferreira, então com 85 anos, decidiu vender o grupo Órbita-Miralago.

 

PUB

A nova administração do grupo, dos donos Jorge Santiago e Nuno Silva, toma posse no dia 4 de setembro de 2015, e, um ano depois, ganha uma espécie de "Euromilhões" à escala nacional: a Órbita vence o concurso para a Gira, o sistema de bicicletas partilhadas de Lisboa - um contrato no valor de 23 milhões de euros, com a validade de oito anos.

 

Mas eis que esta quarta-feira, 10 de abril, a EMEL, empresa municipal que além do estacionamento em Lisboa gere também a rede Gira, anunciou a rescisão do contrato com a Órbita alegando "sucessivos incumprimentos contratuais", desde dezembro de 2017, que resultaram em sanções de 5,25 milhões de euros, valor que corresponde a 20% do valor global do contrato, o limite máximo estipulado pela contratação pública para execução de penalizações deste género.

PUB

 

Segundo a EMEL, das 140 estações que deviam estar neste momento a funcionar, a rede Gira apenas dispõe atualmente de 92, sendo que 74 estão em operação, 15 estão instaladas mas têm falta de bicicletas e três encontram-se inoperacionais por falta de componentes.

 

PUB

Ao nível das bicicletas, em março, a rede Gira tinha em funcionamento uma média de 500 velocípedes, dos quais 200 elétricos, quando o número previsto no contrato era de 624 bicicletas elétricas e 311 convencionais, num total de 935.

 

A EMEL garante que a Órbita desperdiçou as várias oportunidades que lhe foram dadas para cumprir com o contratado, tendo-lhe sido dado até tempo, afiançou, para conseguir firmar a alegada entrada de um novo acionista, o que nunca chegou a acontecer.

PUB

 

Rescindido o contrato com a Órbita, a EMEL anunciou o lançamento de um novo concurso para a "expansão, operação e manutenção" da rede Gira, que prevê que ao atual sistema sejam adicionadas "até ao total de 3.500 bicicletas, 80% das quais elétricas, e até 350 estações, durante um período máximo de oito anos".

 

PUB

"Não é de boca que se rescinde o que quer que seja"

 

No dia seguinte, em comunicado, a Órbita manifestou uma "enorme surpresa" face ao anúncio da rescisão do contrato por parte da EMEL, e ainda que reconhecendo "que existem problemas na conclusão do projeto das Gira e na sua operação", avisava que "jamais" aceitaria "ser o bode expiatório de um problema que tem mais responsáveis e é mais complexo do que transparece".

PUB

 

Ao Negócios, o presidente da Órbita garantiu que, até ao final da tarde desta sexta-feira, 12 de abril, ainda não tinha recebido qualquer comunicação formal por parte da EMEL relativa à rescisão do contrato.

 

PUB

"Eles denunciaram publicamente que iriam rescindir mas não rescindiram - não tenho nada em cima da mesa", reagiu Jorge Santiago.

 

Daí que tenha rejeitado o desafio de responder às alegações da empresa municipal de Lisboa para a rescisão do contrato. "Nada posso avançar, não posso decidir nada enquanto não tiver um documento. Não é de boca que se rescinde o que quer que seja", ressalvou.

PUB

 

Maioria dos trabalhadores pede rescisão de contrato com base nos salários em atraso

 

PUB

Os problemas na rede GIRA, desde o final de 2017, denunciava a situação problemática em que o grupo Miralago/Órbita se encontra.

 

Após três meses sem receber salários, no princípio deste mês, cerca de 50 trabalhadores da Órbita enviaram cartas de rescisão de contrato para a empresa, enquanto o sindicato do setor manifestou a sua preocupação pela falta de trabalho na empresa por já nem sequer ter maquinaria para o efeito.

PUB

 

"Não é verdade. Temos muito trabalho", contrapôs o presidente da Órbita, ainda em declarações ao Negócios. "Mas não posso falar mais sobre isso, sob pena de pôr em causa a solução que tenho que ter com a EMEL", explicou, garantindo que tem a trabalhar na empresa "cerca de 15 pessoas".

 

PUB

A empresa está a caminho da falência? "Não, de maneira nenhuma", afiançou Jorge Santiago, apesar de reconhecer que o grupo que lidera tem vindo "a acumular prejuízos", adiantando que a faturação no ano passado "foi de cerca de quatro milhões de euros", contra "sete milhões no ano anterior".

 

Credores requerem administração judicial para a Miralago/Órbita 

PUB

 

Contactada a Associação Nacional das Indústrias de Duas Rodas, Ferragens, Mobiliário e Afins (Abimota), o secretário-geral da organização começou por afirmar que "a situação da Órbita, e sem um conhecimento aprofundado do assunto, parece-nos resultar de algumas vicissitudes dos negócios em que a abordagem efetuada não resultou como havia sido planeada".

 

PUB

Para Gil Nadais, "às vezes há grandes projetos que são grandes problemas", reportando-se ao impacto da Gira na Órbita. "O projeto de Lisboa, conforme estava feito, exigia uma alavancagem financeira que não foi corretamente dimensionada", considerou o líder da Abimota.

 

Entretanto, há já credores a requerer a administração judicial para a Miralago/Órbita. É o caso da Forjaço, empresa da Anadia, que já requereu ao tribunal a insolvência da fabricante de bicicletas de Águeda.

PUB

 

"Sim, é verdade", confirmou fonte oficial da Forjaço, que, sem querer adiantar mais informações sobre esta matéria, sempre foi dizendo que "há situações bem piores", reportando-se aos créditos detidos por outros credores da Miralago/Órbita. 

 

PUB

Portugal é o segundo maior exportador europeu e tem a maior fábrica

 

Segundo dados do Eurostat, em 2016 Portugal era o maior exportador de bicicletas da Europa, tendo descido para o segundo lugar no ano seguinte - perdeu o título de campeão europeu por uma nesga, pois tinha exportado em 2017 cerca de 1,73 milhões de bicicletas, logo atrás das 1,76 milhões de Itália.

PUB

 

Espanha, França e Itália são, de longe, os principais mercados das bicicletas portuguesas, tendo absorvido cerca de 80% do que é produzido no nosso país.

 

PUB

E é em Portugal que se situa a maior fábrica de montagem de bicicletas da Europa. Mora em Vila Nova de Gaia, chama-se RTE Bikes, emprega 700 pessoas e produz cerca de 1,4 milhões de unidades por ano, seguindo 95% para exportação.

 

Apesar de ter a maior fábrica de bicicletas, Portugal está fora do pódio europeu no "ranking" global.

PUB

 

"Portugal ocupa um lugar cimeiro no que se refere à produção de bicicletas, no entanto, não estando no segmento mais baixo do mercado, também não se encontra no mais elevado, embora continue a subir na escala de valor", sublinhou o secretário-geral da Abimota.

 

PUB

"Nestas circunstâncias Portugal monta um número elevado de bicicletas, sendo o quarto montador europeu, que ainda não é correspondido, ao nível do ‘ranking’, com o do valor, mas estamos a subir, e estamos certos que no final deste ano de 2019, com a grande aposta que está a ser realizada na montagem de bicicletas elétricas, teremos uma posição mais reforçada na componente valor", realçou Gil Nadais.

 

De acordo com este responsável associativo, o setor das duas rodas em Portugal tem "mais de duas dezenas de empresas e mais de sete mil trabalhadores".

PUB

 

Entretanto, a indústria portuguesa de bicicleta, que "já se tinha afirmado" em termos de qualidade, "está a ser testada na sua capacidade produtiva" e a "responder favoravelmente no que respeita ao número de bicicletas montadas e componentes fabricados", afirmou o líder da Abimota.

 

PUB

A recente regulamentação europeia sobre as bicicletas elétricas, assim como a introdução das taxas antidumping, "vieram promover uma procura mais forte das bicicletas elétricas que estão a ser muito procuradas na Europa e que são um veículo de eleição pelas vantagens que trazem, no que respeita à saúde e à descarbonização das cidades", defendeu.

 

Com a indústria nacional de bicicletas a pedalar a alta velocidade lá fora, Gil Nadais acusa o Governo de impedir que o setor tenha a mesma dinâmica no mercado interno: "Pena é que a desarticulação política em Portugal entre diferentes ministérios não permita que nos aproximemos mais rapidamente dos níveis de utilização da bicicleta de outros países europeus, e mantenhamos um mercado português diminuto."

PUB
Saber mais sobre...
Saber mais orbita bicicletas
Pub
Pub
Pub