Recuo democrático nos EUA abre precedente "perigoso" para as democracias liberais
Estaremos num processo de retrocesso das democracias liberais? E como podemos combater esse retrocesso? Três especialistas ouvidos na conferência de aniversário do Negócios consideram que o recuo democrático nos Estados Unidos abre um precedente "perigoso" para as restantes democracias e que é preciso tomar medidas, incluindo ter os partidos a preocuparem-se com que questões que são bandeira de campos opostos.
Num painel sobre a democracia e as suas ameaças e limites, na conferência "#O Poder de Fazer Acontecer 3.0", estiveram à conversa Francisco Seixas da Costa, embaixador e consultor estratégico, Ana Santos Pinto, professora do departamento de estudos políticos da Universidade Nova de Lisboa, e o almirante Silva Ribeiro.
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Francisco Seixas da Costa defendeu que o recuo democrático na principal democracia do mundo – os Estados Unidos – "cria um referencial à escala global bastante perigoso" para o resto do mundo. Segundo o embaixador, há hoje "desconfiança num sistema que os próprios EUA ajudaram o mundo a construir após a Segunda Guerra Mundial" e, em particular, sobre "a credibilidade do multilateralismo, no qual os pequenos e médios países se habituaram a segurar como afirmação global".
Ana Santos Pinto concorda que o facto de a Administração Trump estar a ameaçar o sistema democrático "é um facto de legitimação" e lembrou que a democracia é "o poder dos cidadãos" e que "implica a sua participação e controlo da agenda política". Mas é precisamente aí que "está a haver uma erosão", disse.
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O problema é também visível na União Europeia (UE), destacou o almirante Silva Ribeiro. "Como há democracias iliberais na UE, elas não respeitam a liberdade de imprensa, a independência dos tribunais, a separação dos poderes. São eleitas, mas como subvertem estes pilares, nomeiam para a UE representantes que interferem no processos de tomada de decisão e corroem o funcionamento das instituições", alertou.
Para lidar com essa ameaça iliberal, entende que é preciso acabar com o voto por unanimidade na UE, em matérias como política externa e económica, porque o projeto europeu arrisca ficar bloqueado pelas decisões de democracias iliberais, como é o caso da Hungria de Viktor Órban.
Seixas da Costa entende que as democracias liberais devem fazer um "contraponto" às democracias iliberais, continuando a relacionar-se com elas e "mantendo abertas as portas ao diálogo". "As diplomacias funcionam dentro de cada modelo. O grande desafio da diplomacia é ser uma plataforma de contacto entre realidades diferentes, mesmo quando antagónicas", defendeu, salientando que "não vale a pena ter ilusões sobre o papel que a democracia pode ter no panorama global".
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Com as redes sociais a exercerem um papel crucial na política nacional e internacional, Ana Santos Pinto considera que é mais difícil distinguir "a ideia de verdade e da pós-verdade" e que isso levanta questões de segurança. Por isso, é essencial manter "um canal paralelo", o canal tradicional bilateral, com todos os países, "incluindo com aqueles em que não há uma relação privilegiada". "A dita 'normalidade' [das redes sociais e dos desafios de segurança] é uma condicionante aos nossos direitos e liberdades individuais", referiu.
"A base da democracia é o conflito entre posições diferentes e a consensualização nessas posições e, por isso é que estamos num caminho de retrocesso, porque não estamos a conseguir falar, consensualizar e respeitar a legitimidade do outro. É muito difícil obter consensos e há este ambiente tóxico", destacou Ana Santos Pinto.
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É aqui que entra a questão da segurança. Para o almirante Silva Ribeiro, "o que garante da segurança também pode limitar direitos, liberdades e democracias". Tal aconteceu no caso do período da covid-19, em que o Estado teve de determinar restrições rápidas dentro do quadro legal estabelecido. Mas há "uma fricção": "a legitimidade [do uso da coerção] decorre da decisão do Governo de empregar esses instrumentos para proteger os cidadãos mas também do controlo democrático, exercido pelo Parlamento".
Já Ana Santos Pinto considera que é preciso restabelecer a confiança no sistema democrático e que tal só é possível com uma alteração significativa nas agendas de cada partido. "É preciso dar uma resposta às necessidades. A esquerda tem de se preocupar mais com a segurança e a direita tem de se preocupar mais com a desigualdade", sugeriu, apelando também a uma "linguagem menos hermética" para que a mensagem política chegue melhor a todos os cidadãos.
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