[232.] Carne Alentejana, Vinhos do Alentejo
O que se pretende neste anúncio é o ar terra-a-terra, um “ou me aceitam como sou ou façam zapping”. O Alentejo tem uma personalidade muito vincada e hoje mítica, isto é, o alentejanismo tornou-se um padrão cultural partilhado nacionalmente. Ora, quem diz padrão diz valor e diz... marca. Este anúncios transformam a personalidade e o orgulho alentejanos numa marca que vende. A carne de certos animais irracionais é boa porque é “autêntica”, porque é “alentejana”. Estamos, afinal, no mundo simbólico: não se lhe pode fugir.
O que significa a autenticidade? Ser “autêntico”, para usar uma tautologia do nosso tempo, é ser-se o que se é. É não imitar, não seguir, é ser fiel a qualquer coisa que vem de trás. A isso se junta, neste caso, ser descomplicado, simples, ser “português” e ser do “campo”, do mítico mundo rural aparentemente menos complexo do que a cidade.
PUB
Surgida da velha oposição campo-cidade, a autenticidade aparece, com descaramento, noutros bons anúncios, os dos Vinhos do Alentejo. Ei-la em destaque na frase de abertura: “a autenticidade alentejana contagia.” Ou nesta: “a ousadia alentejana contagia.” Esta última palavra é significativa, porque sugere um efeito de difusão multitudinária que nos leva a sermos todos semelhantes pelo contágio, ao mesmo tempo que justifica o “efeito do álcool” na zona desfocada no topo inferior das fotos.
Um dos anúncios mostra um homem que parece saído duma passerelle parisiense onde tivesse passado roupa inspirada no Alentejo. Isto é, ele um hiper-citadino. Passeia duas ovelhas pela trela, como se fossem cães, numa urbaníssima paisagem, na esquina de dois prédios modernistas mas áridos. A imagem confunde-nos, pois dissolve urbano e rural numa terceira realidade. O anúncio que faz par com este mostra uma mulher passeando uma ovelha por uma trela chiquíssima e ela mesmo anda pela rua vestida de preto, a cor do chique. Ele e ela são flâneurs alentejanizados, ambos conquistam a avenida orgulhosos da sua marca de “autenticidade”, o gado.
Como disse, a parte baixa deles e das ovelhas aparece envolta num desfocado resultante da euforia do vinho, uma euforia que contagia, uma euforia de “vinhos que marcam”. Na verdade, o homem ou a mulher dos anúncios, com quem nos devemos identificar enquanto observadores são visões antropomórficas do próprio vinho alentejano e das suas qualidades simbólicas: autenticidade, ousadia, orgulho. Este produto conquista a cidade, os urbanos deixam-se “contagiar” pela “ousadia” e pela “autenticidade”; mais que isso, conquista o país e o mundo, diz o texto. O “autêntico” apresenta-se, assim, como um produto sofisticado que já não é só do mundo rural onde foi buscar a marca da autenticidade. Este “autêntico” vence um “não-autêntico” que não sabemos o que é, só sabemos que este é um autêntico pós-moderno, uma terceira realidade surgida dum orgulho rural mas também dum orgulho urbano, ambos invocados simbolicamente para vender um produto que, também ele, já não é só agrícola como não chega a ser só industrial.
PUB
P.S. O meu artigo da semana passada sobre o “orgulho hetero” da cerveja Tagus motivou diversas mensagens denotando incompreensão do que escrevi sobre os efeitos que poderá ter uma oposição tipo lóbi contra uma sensibilidade maioritária na sociedade. Entretanto, vejo um anúncio de Dolce & Gabanna na TV portuguesa que apresenta não um, não dois, não três, mas quatro casais monossexuais beijando-se na boca. Ao contrário do que fez esse lóbi anti-Tagus, ninguém protestou, nem apresentou queixa, nem levou à autocensura. Ainda bem.
Mais Artigos do autor
Mais lidas
O Negócios recomenda