[266.] Publicidade necrológica

A necrologia é publicidade? Sim: no sentido antigo da palavra, por se tornar pública uma informação; no sentido moderno por se tratar de uma comunicação publicada contra pagamento. É uma estranha publicidade, a menos desejada por quem a paga, uma publicidade de más notícias. À margem das agências publicitárias, o anúncio necrológico constitui uma publicitação cuidada, obedecendo a regras rigorosas e vigiada por familiares ou colegas de trabalho.

A morte é tão complexa como a vida. Quando se trata de informar sobre a morte de alguém através de anúncio pago, há muitas questões a que é preciso responder para se chegar ao aparentemente vulgar rectângulo na imprensa. Vejamos algumas.

Onde publicitar? Estes reclames saem quase sempre na imprensa diária dita séria ou de referência; exclui-se outro tipo de publicações, incluindo "sérias" (semanais, "magazines", etc.). E a TV ou a rádio? Na Alemanha foi anunciado há tempos um canal necrológico de TV. Não sei se terá tido sucesso. Esta publicidade não condiz com o audiovisual, por ser mais chocante ouvida ou vista; é mais socialmente correcto lê-la num jornal, um media que garante recato a quem é confrontado com o conhecimento da morte de alguém. Além disso, o jornal é uma prova física de que a notícia foi dada: a morte, sendo o mais privado dos eventos, é também pública no sentido em que a sociedade e o Estado têm de ser informados dela.

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Quando se dá conhecimento público da morte, antes ou depois da cerimónia de disposição do corpo? Hoje muitas mortes só se publicitam depois das cerimónias fúnebres (assim com mais recato), reservando-se o anúncio para uma simples informação pública do passamento ou sobre a missa de sétimo dia, no caso dos católicos.

Coloca-se ou não um símbolo religioso? No caso de pessoas de famílias vagamente católicas mantém-se o hábito – ou a obrigação – de colocar a cruz de Cristo, mesmo quando o morto não praticava nem cria. Os que lhe sobrevivem, porém, pretendem garantir-lhe (e garantir-se) o conforto religioso e a integração social associada à religião.

Indica-se a profissão, coloca-se um "Dr." ou "Eng." antes do nome? A valorização social do morto é importante para os seus sobreviventes, mesmo que a indicação do elemento distintivo de carácter sócio-profissional contrarie os fundamentos da cristandade, que sempre acentuou a igualdade de todos na morte.

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Quem participa a morte e a cerimónia fúnebre? E em que ordem? Por idades? Depende do conceito vigente de família. Há mortes anunciadas detalhadamente por famílias alargadas, incluindo genros e noras, netos e bisnetos, outras singelamente pela anónima família. Há mortes anunciadas pelas empresas de que os falecidos eram sócios, administradores, gerentes ou chefes, revelando-se o quanto para uma parte da população a ética do trabalho se mantém ainda a par da familiar. A estrutura social em que alguns se inscreviam vê-se na repetição de anúncios da sua morte, variando apenas quem paga o anúncio. Não há misturas: a empresa X não anuncia a morte do gerente no mesmo anúncio da empresa Y; são diferentes, sem contar com os da família, como se a mesma pessoa tivesse vivido vidas diferentes, e morresse agora mortes diferentes: a da família, as das empresas X ou Y, do clube, da autarquia e até do partido.

O anúncio inclui ou não fotografia? Muitos incluem. A imagem faz parte da cultura; é pelas imagens, mais que nos nomes, que se recordam os mortos. Parece-me que se enlaçam aqui duas tradições diferentes, uma antiga, outra recente: no País "antigo" o uso vulgar da foto resultará duma cultura rural enraizada num antigo analfabetismo; nas grandes cidades é uma tradição recente que resultará da nova cultura do espectáculo e da imagem. Há uma grande diferença: na tradição de origem rural a foto é "oficial" tipo BI, mostra a pessoa em traje formal e sem expressão emocional; na tradição urbana a foto é informal, mostrando-a em momento de felicidade. A descristianização da sociedade é patente neste último tipo de anúncios necrológicos, muitas vezes completados com pedaços de poemas ou frases líricas e sentimentais evocando reencontros que encaixam menos no cânone cristão que noutras variantes da espiritualidade humana. Nalguns anúncios destes familiares e amigos falam directamente com o morto, fazendo do media um médium, do anúncio uma carta aberta.

Os reclames da morte dizem tanto acerca dos que ficam como dos que partem. Vejam-se as páginas necrológicas do "Jornal de Notícias": impressionantes, de tantos anúncios que têm, tão variados, tão cheios de fotos formais e cruzes de Cristo, de tanta informação familiar e empresarial. Sem paradoxo, estas páginas do "Jornal de Notícias" têm, nos anúncios da morte, uma vitalidade enorme, uma vida imensa, que se prolonga no jornal da comunidade: o que ali vemos é a própria sociedade, vibrante, quase que em festa, a sobreviver aos que a deixam para sempre e que, a crer em tantos os anúncios, a trocam por uma vida melhor.

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