Chegar ao coração das pessoas
Há quem relativize a importância deste fenómeno, desculpando-o com a necessidade de estilizar na comunicação as diferenças entre as alternativas em confronto. Mas, na verdade, esta justificação é fraca porque, apesar de nos poder fornecer uma medida de tolerância para os excessos de demagogia e de retórica em tempos de campanha eleitoral, tem o efeito perverso de ajudar a confundir a natureza do debate e da disputa em questão. E isto porque, mesmo que possamos inspirar-nos em considerações de ordem filosófica, estética, religiosa ou outra, quando somos chamados a decidir em eleições livres fazemos escolhas de natureza política, não de qualquer outra natureza, e é essa dimensão política que está em causa quando debatemos e confrontamos argumentos.
Dir-se-á que não é fácil segmentar assim as diversas dimensões que sustentam as nossas decisões. Que, quando escolhemos politicamente, estamos também a derivar uma certa concepção do mundo nos seus mais variados aspectos. E que, escolhendo entre opções diferentes, atendemos tanto às ideias quanto às pessoas que as defendem, pois que as ideias políticas não valem independentemente de quem as defende e ainda bem que assim é. Nesta circunstância, não interessa apenas o programa objectivo que é proposto para avaliação, também as qualidades - cuja percepção é necessariamente subjectiva - daqueles em quem votamos podem mesmo ser decisivas para o resultado final do julgamento político. Daí a importância de atributos tão variados como a credibilidade, a honestidade, a coerência, a liderança, entre muitos outros, quando se trata de escolher os nossos representantes e, sobretudo, quando chega o momento de julgar aqueles em quem confiámos para nos governar.
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Normalmente, toda esta gama de aspectos parcelares e subjectivos se junta às ideias objectivadas em programas, com elas se fundindo em proporções variáveis segundo a escolha de cada cidadão. Reduzir este conjunto a uma hiper-simplificação valorativa é empobrecedor e até perigoso. Na simetria dessa linguagem dicotómica, todas as divisões simplificadoras da realidade se tendem a absolutizar: Direita e Esquerda, Progressistas e Conservadores, Liberais e Estatizantes, tudo e todos passam a ter uma ordem axiológica que não admite segundo grau. Perversamente, daqui resulta que, no fundo, a categorização torna-se frequentemente posicional - pertence-se aos "bons" quando se está do lado "certo", mas em rigor não existe nenhuma regra objectiva muito menos absoluta para distinguir racionalmente "Bem" e "Mal".
Acresce que estas narrativas a preto e branco não se dão bem com o erro nem com a diferença, e ainda menos com a tolerância ou o pluralismo - antes alimentam o juízo de valor apriorístico e arrogante, o pensamento monista, o preconceito moral e social, até mesmo o fanatismo. São, por isso, antecâmaras de uma cultura de totalitarismo que emergem também em sociedades democráticas, pelo que não podem ser desvalorizadas nem relativizadas.
As eleições legislativas e autárquicas que temos pela frente serão um palco interessante de observação pedagógica para este efeito. Em todas as formações partidárias se apresentam, infelizmente, visões redutoras do tipo maniqueísta. Creio que, felizmente, os eleitores se apercebem cada vez melhor do embuste e se vão habituando a distingui-las e a não lhes dar a audiência requerida. No fundo, percebem que em todo o lado há bons e maus mas que, de um modo geral, os diversos agentes políticos buscam um "bem comum" em cujo grau cada um de nós se pode identificar mais ou menos, dependendo tal identificação do tempo e do espaço em que somos chamados a pronunciar-nos. O facto de termos visões diferentes desse "bem comum" e, até por essa razão, de defendermos caminhos diferentes para o alcançar apenas nos torna concorrentes e competidores, sujeitos à crítica e ao escrutínio. E, vale a pena recordá-lo: as eleições democráticas ditam uma regra de decisão, e não um resultado de mérito absoluto sobre a natureza valorativa das escolhas.
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Dito isto, espera-se que a confrontação política seja clarificadora. Não faltarão argumentos para esgrimir, quer sobre os resultados alcançados, quer sobre os planos de mudança ou de reforma. Não é preciso cair no relativismo nem na neutralidade de valores para marcar as diferenças de programa e de atitude política. Mas creio que, nos tempos de especiais dificuldades que enfrentamos, levará vantagem quem melhor identificar e alavancar os aspectos mais positivos que a sociedade no seu todo apresenta e quem estiver mais próximo das pessoas. Não há receita nenhuma para a actual crise que deva passar à margem da confiança dos indivíduos no que eles próprios têm de melhor, independentemente dos seus posicionamentos partidários e ideológicos tradicionais. Na inteligência emocional dos eleitores, não são os medos e as dificuldades que deverão ser explorados, mas antes a capacidade para gerar esperança e motivação para as ultrapassar.
Numa frase, espero que a crise não nos impeça de chegar ao coração das pessoas. Nestas eleições não chegará, como nunca chegou, estar convencido de ter a razão.
Militante do PSD, gestor Assina esta coluna mensalmente à terça-feira, excepcionalmente é publicada hoje
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