Manta Rota
No espaço de pouco mais de seis meses, Mariano Rajoy arrancou uma série de compromissos improváveis que estão a rasgar a manta curta que a Europa ainda anda a tecer para tentar abrigar-se dos rigores da crise.
Primeiro conseguiu flexibilizar em um ponto percentual a meta do défice deste ano, depois de ter descoberto (já começa a ser tradição) que herdara um buraco orçamental mais fundo do anterior Governo socialista. Conseguiu depois mais um ano para tentar domar o défice abaixo do limite quase mítico de 3%, esticando o prazo para 2014. Até aqui, há certamente muitas críticas à forma sinuosa como a coisa foi feita, mas sobrarão poucas para a substância: mexer em metas e prazos foi fundamentalmente um banho de realismo em que mais cedo ou mais tarde terão de mergulhar outros países do euro, puxados pelo regresso da recessão e desemprego teimosamente persistente.
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Espanha conseguiu ainda a promessa de um empréstimo para lá de generoso para recapitalizar e financiar a reestruturação (eufemismo para provável liquidação) de parte do seu sector bancário que, tivesse a concorrência e a regulação funcionado como era suposto, há muito "já era". São 100 mil milhões de euros que eventualmente não serão gastos na totalidade, mas que superam amplamente os empréstimos acordados para financiar três anos de políticas e de funcionários públicos em Portugal e na Irlanda - recapitalização das respectivas bancas incluída. Mas até aí, vá lá, tudo bem: Se há mecanismos europeus que permitem ir buscar dinheiro ao mercado eventualmente a taxas de 3% ou 4%, ou seja, quase metade do que Espanha pagaria, faça-se uso deles.
Mas Madrid quer mais. Está a bater-se para que o empréstimo aos bancos não tenha impacto na sua dívida pública (e viu essa exigência legitimada na última cimeira europeia, ainda que condicionada ao mínimo, que é a montagem de uma supervisão bancária europeia). E conseguiu ainda que o futuro Mecanismo Europeu de Estabilidade, que provavelmente financiará o essencial do empréstimo, abdicasse do estatuto de credor sénior. Ou seja, os países do euro (e seus
contribuintes) não podem aspirar ser os primeiros a serem ressarcidos, fazendo uso do estatuto de credor privilegiado (como tem o FMI), caso os bancos espanhóis não consigam pagar tudo (ou algo) do que devem.
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Espanha teve o mérito involuntário de desfazer o mito do "too big to fail" - afinal, foram os pequenos bancos que tramaram o país. Mas quer agora entronizar um outro, mais absurdo: o de que a ajuda pública a bancos não deve ser contabilizada nas contas públicas do respectivo país, porque alimenta a espiral perversa, movida pelos mercados financeiros, entre saúde financeira da banca e a dos soberanos. Embora com uma génese distinta, o caso irlandês mostra que essa espiral existe, mas também que ela vem e vai: o sistema financeiro irlandês ainda está longe de estabilizado, e a curva dos "juros" da dívida irlandesa é já hoje bem mais saudável do que a espanhola. Será possível, portanto, traçar diferenças entre bancos e soberanos - haja disposição para as ver.
Madrid quis compreensivelmente o melhor de dois mundos. Mas esticou demasiado a manta que, não tendo ficado menos curta, ficou também rota. A Finlândia exige agora garantias reais do Estado espanhol. Mais poderão fazê-lo. Sendo difícil, vale a pena todo o esforço para explicar a um contribuinte na Lapónia porque deve ser fiador de um empréstimo destinado a salvar Portugal ou a própria Espanha, e ser até tratado como um qualquer investidor, caso a coisa corra para o torto - porque é o euro e o projecto de integração da Europa que se estará a tentar salvar. Mas para salvar bancos? Bankias, investigados por fraude?
*Redactora principal Visto por dentro é um espaço de opinião de jornalistas do Negócios
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