Rui Neves ruineves@negocios.pt 10 de Janeiro de 2007 às 13:59

O Terceiro Sector. Um desafio ao Governo

Nas modernas economias temos assistido ao desenvolvimento acelerado, no espaço económico e social que se estende entre o Estado e o sector empresarial privado, de um vasto sector associativo que, em Portugal, ...

Nas modernas economias temos assistido ao desenvolvimento acelerado, no espaço económico e social que se estende entre o Estado e o sector empresarial privado, de um vasto sector associativo que, em Portugal, abrange organizações tão diferentes como cooperativas, sindicatos, Misericórdias, fundações diversas, associações ambientalistas, associações mutualistas, centros sociais, centros de dia, hospitais e clínicas, escolas, associações empresariais e profissionais, grupos desportivos, associações culturais, etc., que têm em comum o facto de serem organizações autogeridas que visam objectivos de ordem social, não estão integradas na organização do Estado, recorrem mais ou menos extensivamente ao voluntariado e não têm fins lucrativos.

Este conjunto de actividades é referido sob diversas denominações – "non profit economy", economia social, organizações da sociedade civil ou apenas sociedade civil, ONG’s, Terceiro Sector, entre outras – e é formado por um conjunto cada vez mais vasto de organizações e de pequenas empresas de serviços, que desenvolvem no seio das modernas economias de mercado redes de solidariedade, de expressão de capacidades criativas e de defesa dos direitos dos cidadãos cuja importância se projecta para lá do plano meramente económico, para a ordem política e social, contribuindo para a criação de espaços de solidariedade, criatividade e protecção social (que, em muitos casos, tendem mesmo a substituir-se ou a completar a acção do Estado) e a contrariar os desequilíbrios gerados pelas profundas alterações estruturais que atingem as sociedades modernas. 

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L. M. Salamon, S. W. Sokolowski e R. List, da Universidade Johns Hopkins, têm estudado esta realidade a nível global. No capítulo introdutório do seu interessante relatório "Global Civil Society", datado de 2003, afirmam mesmo que o impacto da explosão das organizações da sociedade civil no início do séc. XXI pode ser comparável ao da ascenção do estado nação verificada cem anos antes, no início de séc. XX. E mais adiante, no mesmo relatório, afirmam ainda que, do ponto de vista económico, este sector, só por si, é já equivalente à sétima economia mundial.

O Terceiro Sector (como passarei a designar, neste artigo, a realidade que estamos a analisar) tende a desenvolver-se nas sociedades ricas da Europa e da América, como expressão pessoal da liberdade do cidadão perante a desumanidade das grandes organizações, Estado ou empresas privadas, e é possibilitada pelo envelhecimento acelerado da população, o aumento da mobilidade e da facilidade de comunicação entre as pessoas e, em geral, da prosperidade continuada desses países, que concede mais meios aos cidadãos para se associarem. Aliás, uma das características da Era da Informação em que vivemos é que as redes de cidadania e entreajuda social deixaram de ser o exclusivo de alguns países mais desenvolvidos para adquirirem uma dimensão internacional por vezes muito alargada.

Reflectindo um desencanto crescente quer com a organização estatal, demasiado marcada por objectivos políticos e excessivamente burocratizada, quer com o mercado, realidade desumanizada e geradora de desigualdades crescentes e insustentáveis, as organizações da sociedade civil – o Terceiro Sector – permitam mobilizar a capacidade realizadora da iniciativa privada para a resolução de problemas de interesse público e social.

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Possibilita-se assim um casamento virtuoso, aliando o potencial da organização e da gestão privada com a prossecução de objectivos públicos e sociais numa escala mais humana, permitindo uma maior flexibilidade e proximidade aos cidadãos, capaz de abrir novos caminhos para a evolução das sociedades modernas na promoção do bem estar das populações, em particular nas áreas do emprego e da solidariedade, numa época de mudanças aceleradas que, para muitos, se revela ameaçadora.

Em Portugal, assiste-se também ao desenvolvimento acelerado do Terceiro Sector, impulsionado pelo envelhecimento acelerado da população, pelo aumento do nível de vida e, crescentemente, em consequência da modernização da economia e da política de controlo do desequilíbrio do Orçamento do Estado, que estão a "libertar" muita gente tanto do lado da administração pública como do lado das empresas (em especial nas áreas mais expostas à concorrência internacional).

Num relatório assinado por Raquel Campos Franco (da U. Católica), S. Sokolowski, E. Hairel e L. Salamon, integrado no projecto acima referido da U. Johns Hopkins, traça-se o perfil, para 2002, do Terceiro Sector em Portugal. Era já responsável por 4,2% do PIB, ocupava 4,0% da população activa (cerca de 70% desse emprego pago) actuando principalmente na área dos serviços (60% da utilização dos recursos humanos) e, dentro destes, no apoio social (48% dos recursos humanos) e, do ponto de vista do financiamento da sua actividade, 48% das receitas provinham de fees e pagamento de serviços prestados, 40% do apoio estatal e os restantes 12% de doações e filantropia.

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O desenvolvimento atingido pelo Terceiro Sector nos países do modelo social e do estado previdência característico dos países da metade ocidental da Europa continental, nomeadamente países como a Bélgica e a Holanda (e, mesmo a Irlanda) mostram que, em Portugal, existe um interessante potencial de desenvolvimento para o Terceiro Sector.

Com efeito, nestes países, e de acordo com os valores apontados nos relatórios que temos vindo a referir, o Terceiro sector ocupa mais de 10% da população activa (com cerca de 80% de emprego pago), o apoio financeiro do Estado equivale a 4% do PIB (contra cerca de 2% no nosso país) e os sectores da "educação" e da "saúde" pesam significativamente na actividade total.

Este é, certamente, um caminho possível para ajudar a resolver alguns dos nossos problemas na área do emprego e da protecção social mas, sobretudo, de ultrapassar a dependência crónica do Estado característica da sociedade portuguesa. Portanto, um possível ponto de partida no percurso para a redução do papel do Estado em sectores como a saúde e a educação sem que tal signifique um risco para a solidariedade e a coesão social. 

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Eis aqui um duplo desafio ao "Estado/Governo" e à "Sociedade Civil". A criação de uma parceria activa para o desenvolvimento, o emprego, a solidariedade e a coesão social.

Para concretizar este objectivo será necessário, por um lado, que o Governo defina políticas de parceria para objectivos concretos e instrumentos de apoio à sua concretização, não esquecendo que se não trata de políticas de "subsídio" mas de uma situação real de "criação de valor" para a sociedade superior à que resultaria da prestação directa do bem ou serviço pelo próprio Estado.

Mas o papel estratégico, determinante, cabe à sociedade civil. Para não falhar o desafio (e continuar, simplesmente, a lamentar-se de falta de apoios) terá de  ser capaz de fazer propostas estruturantes, de modernizar a sua actuação, nomeadamente ao nível da qualidade das propostas avançadas, da gestão das suas actividades, da formação dos recursos humanos, do nível das exigências e dos padrões de desempenho.

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É, também, um importante desafio para as Universidades, no sentido de uma maior atenção ao Terceiro Sector, que deverá passar de simples "objecto" de estudo para um verdadeiro "sujeito" de atenção e de exploração de oportunidades, nomeadamente na formação e na reflexão sobre a gestão das organizações não lucrativas ou nas parcerias visando o lançamento de actividades inovadoras.

"Não lucrativo" não pode continuar a significar, salvo algumas excepções, ineficiente. Significa apenas que a função a optimizar e a eficiência da utilização dos recursos se medem por referência a outras variáveis objectivas que não o lucro.

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