Memória de elefante
O porta-voz presidencial insultava os jornalistas estrangeiros sentados à sua frente. Meteu no saco as vírgulas suaves, de anfitrião da conferência de imprensa, trocando-as por exclamações, agressivas, de alguém vingado após humilhação pública.
Durante cinco anos, Londres e Washington vinham atribuindo ao regime do presidente zimbabuense, Robert Mugabe, os mais diversos atropelos aos direitos humanos e às regras internacionalmente aceites de democracia. A imprensa desenterrara estes esqueletos no armário de um processo pós-independência, até ali tido como exemplar, num continente devorado por ditaduras, guerras e auto-proclamados donos da verdade e dos interesses dos respectivos povos.
Londres rompeu o compromisso de financiar a reforma agrária zimbabuense, assumida nos acordos de Lancaster House. Desde a independência , em 1980, as injecções financeiras externas e as terras tomadas pelo Estado serviam para enriquecer figuras do regime e pagar favores prestados a Mugabe. E não, como este assegurava, redistribuir a riqueza e meios pela maioria negra desfavorecida.
Em retaliação, Mugabe fomentou a ocupação e pilhagem das fazendas pertencentes a brancos, justificando-as como uma «reacção popular» à «arrogância de Londres». Deu rédea livre a barbaridades de supostos «antigos combatentes», apesar de grande parte deles não ser sequer nascida à altura da independência do país.
Em 2001, testemunhei naquele país uma das maiores fraudes eleitorais dos tempos modernos. Sob aplauso automático de governos africanos – solidários com um antigo companheiro de trincheira na luta anti-colonial – Mugabe foi reconduzido na Presidência do Zimbabwe.
Aquele que já fora o celeiro da sub-região mergulhava na miséria, incapaz de alimentar a própria população, que continua ainda hoje a saltar a fronteira aos milhares, mendigando a sobrevivência nos países vizinhos. As igrejas, organizações não-governamentais e sindicatos denunciavam as atrocidades cometidas pelas forças de segurança, serviços secretos e militantes da ZANU-PF (partido no poder). O governo respondeu esmagando os media não-estatais e sufocando as ONG.
Naquele dia, o (então ainda) ministro da informação zimbabuense, Jonathan Moyo, recuperou o sorriso, perante os jornalistas estrangeiros reunidos à sua frente.
Londres e Washington tinham acabado de legitimar , aos olhos de Harare e de diversas outras capitais africanas e do chamado Terceiro Mundo, comportamentos autocráticos das respectivas lideranças. Ignorando pareceres contrários de praticamente todas as instituições multilaterais e os indicadores de opinião pública dos respectivos países, Estados Unidos e Reino Unido tinham lançado as «forças da coligação» contra o Iraque, sob uma premissa não testada, que se revelaria falsa. O governo da África do Sul – único país que até à data promoveu voluntariamente a destruição do respectivo arsenal químico e atómico – lutou contra a imposição de mais um sofrimento ao povo iraquiano (já torturado por Saddam) oferecendo o seu «know-how» e a credibilidade mediadora que dispunha nos dois extremos da disputa.
Washington e Londres escolheram não esperar. Naquele dia, Moyo atirou-nos à cara: «(?) no Mundo Ocidental, a vossa democracia, afinal, só conta quando serve os interesses de quem está no poder! Então de que é que nos acusam? Afinal, nas tais, ditas, referências da democracia, esta também fica na gaveta quando lhes é desfavorável e descartável? Eu, se fosse a vocês, metia era a viola no saco e ia pregar noutra paróquia».
E depois, num tom menos confrontacional; - Vá lá! Então? Ainda insistem em querer dar-nos lições de moral ou não será melhor arrumarem a própria casa antes de saírem por aí a ditar aos outros o que fazer?» – Moyo olhou-nos de cima, silenciando uma audiência de jornalistas, veteranos da luta contra a repressão de vozes críticas pelo regime de apartheid sul-africano ou seus vizinhos marxistas.
No dia seguinte, começámos a regressar todos, de avião, aos respectivos países-base. Ao embarcar no voo da «South African Airways», a hospedeira deu-me a escolher entre os jornais «Pretória News», o «The Star» ou o «Business Day». Todos eles mostravam, na primeira página, um menino desmembrado no Iraque, por uma bomba da coligação.
Uma das tais «vítimas colaterais». Imaginei-me pai daqueles olhos inocentes e varri os títulos dos jornais. Bush demonizava os seus oponentes. Blair convocava uma cruzada contra o terrorismo. Lembrei-me daquele menino e pensei nos outros todos que continuam a morrer nas guerras autistas dos adultos.
Esta semana, já em Lisboa, li, através da net, no tal «Pretória News», que Mugabe instruiu o abate dos animais preservados em reservas eco-turísticas zimbabuenses, como solução imediata para a fome instalada no país. À hora do almoço, falei disso a um jornalista sénior, de um «media» cujo nome não conta para aqui. Ele encolheu os ombros e deu mais umas garfadas na salada; «e então, qual é a notícia?» – perguntou ele. «Se as pessoas têm fome, comem-se os animais! E então? Não é para isso que eles servem?».
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