[223.] No-l-ita
Oliviero Toscani regressou em grande com a campanha para a marca italiana No-l-ita mostrando uma anoréctica nua. Os cartazes coincidiram nas ruas com a semana da moda em Milão e causaram uma comoção pública de que já se sentiam saudades: contra ou a favor
Pela primeira vez uma anoréctica exibe – em plena rua – a sua chocante, horrível doença no território da moda, com a linguagem da moda, num espaço da moda, numa marca de moda. Essa é força radical, revolucionária, do conceito: não há nenhuma concessão, a mulher mostra-se nua, de frente e de costas, em posições do corpo que poderiam ser a de modelos mostrando roupa de marca. Aliás, o catálogo da No-l-ita mostra modelos nessas mesmas posições.
O mundo da moda não gostou porque, apesar da sua hipocrisia suave e apenas vagamente prática contra a anorexia, as esqueléticas continuam a desfilar onde os governos não as proibiram por promoção involuntária de uma situação doentia e suicidária. Os anúncios da No-l-ita não deixam margens para dúvidas: além de doença, a anorexia é um horror estético, não é o modelo de beleza que durante anos o mundo da moda irresponsavelmente promoveu. Só por isso os dois cartazes de Toscani para a marca italiana teriam valido a pena. Dada a difusão planetária destes cartazes, será difícil voltar a usar-se anorécticas sem que a imagem da No-l-ita não volte à memória. Apesar de a mensagem textual e icónica dos dois cartazes parecer de uma evidência sem margem para divergências, as reacções colhidas em Portugal e noutros países foram muito variadas. É mais um exemplo de que qualquer imagem, mesmo com uma mensagem flagrante, desperta a polissemia. A campanha teve o apoio do Ministério da Saúde italiano mas foi criticada pela ABA, associação italiana pela prevenção e investigação da anorexia, bulimia, obesidade e distúrbios alimentares. Em Portugal, surpreendeu-me, por exemplo, que um publicitário classificasse esta campanha como de “mau gosto” sem acrescentar que ela é consequência do “mau gosto” do recurso a anorécticas pelo mundo da moda há décadas e sem notar que Toscani e a marca quiseram precisamente atingir no centro do alvo a questão do “gosto”, ou da moda.
Coloca-se de novo, entretanto, a questão: é adequado um empresa comerciar à custa de causas que em princípio não lhe dizem respeito, como faz a No-l-ita, como a Benetton com Toscani a partir dos anos 80, como fazem outras marcas?
No presente caso, a marca ganhou imediata projecção mundial sem mostrar um único dos seus produtos. Luisa Bertoncello, gerente da Flash & Partners, empresa dona da No-l-ita, fez uma declaração estudada e muito significativa: “Quando vi a foto pela primeira vez fiquei chocada por ser tão explícita e pela verdade crua que retrata. Mas hoje a intenção de muitas empresas é usar a publicidade como instrumento para promover a consciência dos males sociais, comunicando pelo uso de uma linguagem simples, combinando a arte e o consumo, o marketing e a informação, através do meio de difusão mais eficaz actualmente disponível: a publicidade.”
A última frase, bem construída, é certeira quanto ao alcance da publicidade na sociedade contemporânea, na qual se confundem comércio, informação, arte e marketing. Todavia, a frase anterior é discutível: podem ser empresas não especializadas em matérias sociais a definir os “males sociais”? E, depois de os definirem, são as suas formas de “promover a consciência” as mais adequadas? Têm um mandato público? Já que estas empresas se situam assim no âmago do debate social, como apreciar a mistura das “causas” com a busca do lucro?
Será esta intromissão em questões perturbantes tão legítima como a acção das empresas em causas consensuais, como por exemplo a caridade e o patrocínio de actividades desportivas?
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