A triste vida da nossa gente
Todas as vezes que o ministro Gaspar surge nas televisões, o povo estremece de terror.
Todas as vezes que o ministro Gaspar surge nas televisões, o povo estremece de terror. Não é pelo seu ar, levemente tenebroso, sim por aquilo que irá dizer. O ministro Gaspar não é homem para palavras benignas e toda a gente já percebeu que não está lá para isso. Ao contrário de Passos Coelho, todo ele afável, de palavra branda e brando sorriso, o ministro Gaspar impõe "o que o Governo decidiu", sem mais delongas, omissões ou rasuras.
Onde é que isto vai parar? Pergunta-se por aí, o ferrete da angústia, da fome, da miséria e do desemprego a queimar a alma. Ainda há mais; ainda vai haver outros "reajustamentos". Estamos com a corda na garganta. Mas nem assim o Governo demonstra um pouco de clemência nem o mais escasso gomo de compaixão. Anteontem, depois de uma linguagem incompreensível para o comum dos portugueses, o ministro, depois de descodificada a retórica, anunciou que vai aumentar, de novo, os impostos; congelar salários e pensões, além de prometer, para breve, a bem da pátria, ligeiros "acertos" conjunturais. Arre, chiça, ministro Gaspar, o sufoco atingiu o insuportável - e não deu por isso?
Eu não gostava do Governo Sócrates e dei-lhe sarrafadas, sem outro objectivo que não fosse o de denunciar anomalias e procurar melhorar as coisas. O homem mentia, com desenvoltura e insensatez. Ora, valha a verdade, Passos Coelho vai-lhe na peugada, com exemplar mimetismo.
Impõem-nos decisões iníquas sem as explicar. E aplicam-nas unilateralmente, ferindo aquela parte da população cada vez mais fragilizada. Que diferença faz, àquele denodado patriota, que tem uma reforma vitalícia de 3.600 contos (moeda antiga), da Caixa Geral de Depósitos após seis meses de fatigantes funções, se lhe congelarem a pensão? O mesmo que auxiliou o Estado com a compra de um banco por 40 milhões, pobre homem! Nisto tudo há uma imoralidade que já não conta; uma indecência que parece ter-se tornado em lugar-comum. Nada me move contra as fortunas adquiridas com trabalho, conheço algumas, pouquíssimas mas conheço, embora também conheça o famoso dito de Balzac, monárquico, lealista, reaccionário, segundo o qual "todas as fortunas assentam num crime."
Ao longo da vida atravessei zonas sombrias da sociedade portuguesa. Sempre fui animado pela esperança de que o dia de amanhã seria melhor e mais belo. Acreditei (ainda acredito) num particular determínio histórico, e que a aventura humana encaminha-se para um período de paz e de acalmia. Quando? Não sei. Décadas? Séculos? Por vezes, a História sobressalta-nos com a brusquidão dos seus avanços, mas, igualmente, com a selvajaria dos seus recuos. "Pelo sonho é que vamos", disse-o, acaso melhor do que qualquer outro, o poeta Sebastião da Gama.
As dificuldades atrozes com que vivemos, a insensibilidade manifesta de quem nos governa, a indiferença que se acentua nos laços sociais atingem aspectos assustadores. É verdade. Mas nunca deixámos cair os braços. Familiares e amigos, muitos de nós próprios pagaram com o cárcere, a perseguição e a afronta o preço de querer ser livres. Demorou. Mas chegou. Alguns espíritos doentios ainda vociferam contra a liberdade adquirida e lamuriam-se com saudades do passado. Recorro a outro grande poeta, Afonso Duarte, o grande autor de "Ossadas", que ensinou: "O tornar ao passado/ é sempre um resto;/ ou, pior, uma falta de saúde."
Muitos daqueles que, morbidamente, acham o passado inigualável, deviam ter pudor. Não há nada a fazer, e nada volta a ser o que foi, assim como nenhuma situação é eterna. A dinâmica da História faz parte do próprio movimento humano, e nada do que é humano é estático ou extático. A nossa obrigação moral é fazer com que a roda não estanque, não deixe de se mover, não pare, em circunstância alguma.
Alguém devia dizer a Pedro Passos Coelho que está a esgotar-se o capital de simpatia com que ganhou as eleições. Não há mal-entendidos. O que ele está a fazer é a depredar os seus próprios compromissos, e a liquidar a imagem ética com que se apresentou ao eleitorado. Não chega ser afável quando o desprezo pelos outros se torna cada vez mais evidente. Passos vai muito mais longe do que se esperava, nos domínios da repressão. Porque de repressão se trata, quando as decisões governamentais ultrapassam o imponderável. Mas, no entanto, repito com o poeta, "pelo sonho é que vamos."
Um grande romance de uma grande escritora
Acabo de ler, pausadamente, com a pausa exigida por uma escritora de primeiríssima água, um romance singular e admirável. A autora é Teolinda Gersão, cuja discrição e modéstia a impelem a afastar-se dos rataplãs da publicidade. O livro de que vos falo, "A Cidade de Ulisses", é um momento raro e altíssimo na prosa narrativa portuguesa. É uma viagem interior por Lisboa, uma Lisboa reinventada a cada passo numa escrita simples, por culta, e culta pela natureza da expressão. Há anos que a leitura de um texto assim convocado não me despertava tanta felicidade e prazer. E as escassas palavras com que o digo são bem precário elogio para um livro tão belo e tão comovente. É um grande romance de amor, porque é um grande romance de pessoas, de ruas e de uma cidade.
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