Harold James 08 de Dezembro de 2017 às 14:00

A tragicomédia do Brexit

O mal-estar britânico vai muito além da política partidária. O Brexit desencadeou uma revolução num país sem tradição revolucionária. Sair da União Europeia irá requerer o desenraizamento de um emaranhado de complexas molduras jurídicas e institucionais em torno das quais gravita a maioria das normas e convenções internacionais.

Enquanto o resto do mundo observa num misto de diversão e pena, a política britânica da era do Brexit acaba por se assemelhar a uma telenovela. Poderá o caos que se abate sobre o Reino Unido ser bom para a Europa, ou mesmo para a Grã-Bretanha? Talvez, mas só no sentido em que uma catástrofe ferroviária nos permite tirar lições sobre aquilo que devemos evitar.

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Os intervenientes políticos britânicos sabem que estão a montar um espectáculo e falam abertamente sobre a vida que imita a arte. O seu modelo é o da série dramática ‘Guerra dos Tronos’ ou o da comédia negra ‘House of Cards’ (a versão inglesa, não a imitação americana que foi cancelada na sequência das alegações de abusos sexuais por parte do seu protagonista, Kevin Spacey).

 

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Ao contrário da tragédia de ‘Hamlet’, em que todos acabam mortos, e em que um estrangeiro (Fortinbras) aparece para repor a normalidade, os modernos dramas políticos de ficções baseadas em factos reais nunca têm uma resolução satisfatória. Por isso, o drama do Brexit está a imitar fielmente a arte: só conseguirá ter uma conclusão bastante complexa.

 

O Brexit não é uma mera convulsão política; é uma revolução. Historicamente, os realinhamentos políticos radicais têm sido raros no cenário político britânico. Um exemplo é o da Revolução Gloriosa de 1688, que derivou num sistema bipartidário com os Whigs, favoráveis a um novo acordo, e os Tories, que se lhe opunham.

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Esse sistema durou mais de um século, até à década de 1840, quando Whig se tornou sinónimo de liberal e Tory significava conservador. Mas então, em 1846, o Partido Conservador dividiu-se quanto à questão da redução dos direitos aduaneiros sobre os cereais, o que era mau para a base agrícola rural do partido mas bom para a indústria e para a sociedade em geral. O equilíbrio político que daí resultou durou quase um século, até aos anos de 1920, quando o Partido Trabalhista substituiu os liberais como a alternativa ao conservadorismo.

 

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Sem dúvida que um novo realinhamento político poderá ser coisa já fora de tempo. Na década de 2000, a primeira-ministra britânica Theresa May desempenhou um papel crucial na melhoria da imagem do Partido Conservador, que era frequentemente qualificado de "partido desprezível". Mas a sua estratégia para o Brexit, através da qual evitou tomar posições claras, transformou o seu partido em algo ainda pior: uma cabala política desonesta, dividida e fraca cujas decisões poderem revelar-se letais.

 

O Brexit transcende a antiga divisão de dois partidos na política britânica. O bloco do Partido Conservador no Parlamento inclui uma pequena minoria que encara o Brexit como um desastre, outros há que querem um compromisso bem negociado, havendo ainda um grupo significativo que se opõe a qualquer compromisso e que aceitou a ideia de uma ruptura "limpa" com a União Europeia.

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O Partido Trabalhista está igualmente dividido. O seu líder, Jeremy Corbyn, é hostil à UE, porque esta poderá impedi-lo de implementar o seu utópico programa socialista. Ao mesmo tempo, muitos parlamentares trabalhistas reconhecem que a União Europeia desempenha um papel central na oferta de oportunidades económicas e mobilidade sociais para os cidadãos britânicos.

 

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Uma vez que nenhuma questão fundamental separa os conservadores pró-UE e os trabalhistas pró-UE, já começou a delinear-se uma cooperação prática entre ambos os partidos. Mas para que qualquer aliança parlamentar deste tipo tenha legitimidade democrática, deverá apresentar-se não apenas como uma coligação de parlamentares com a mesma opinião mas sim como um novo partido político, com um programa que confronte de forma realista os desafios das mudanças tecnológicas e da globalização.

 

Ocorreram transições similares noutros países europeus quando os partidos estabelecidos e as tradições se desmoronaram. Na década de 1990, o sistema largamente bipartidário de Itália desintegrou-se quando o Democracia Cristã se deixou engolir por escândalos de corrupção e o Partido Comunista se desmembrou com o desmoronamento da União Soviética. A política italiana tem sido marcada pela instabilidade desde então.

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Em França, o novo partido político do presidente Emmanuel Macron, República em Marcha, suplantou efectivamente o velho partido de centro-direita gaulista, Os Republicanos, bem como os socialistas de centro-esquerda. Contudo, Macron reconhece, a justo título, que a sua reforma da política francesa só terá sucesso se for aplicada à escala europeia. Se ocorrer uma mudança à escala da Europa, esta ficará, em grande medida, a dever-se ao conto admonitório que se desenrola actualmente no Reino Unido.

 

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Na Alemanha, a ruptura das negociações da coligação entre a União Democrata Cristã (CDU), União Social Cristã (CSU), Democratas Livres (FDP) e Os Verdes sugere que também ali será necessário um realinhamento político [NdT: no dia 7 de Dezembro, o líder social-democrata (SPD), Martin Schulz, recebeu dos seus companheiros de partido apoio para a realização de negociações formais entre a CDU e o SPD com vista à formação de um governo com apoio maioritário no Bundestag].

 

Com efeito, os realinhamentos podem ter maiores probabilidades de ser bem sucedidos na Europa do que no Reino Unido. Afinal de contas, o mal-estar britânico vai muito além da política partidária. O Brexit desencadeou uma revolução num país sem tradição revolucionária. Sair da União Europeia irá requerer o desenraizamento de um emaranhado de complexas molduras jurídicas e institucionais em torno das quais gravita a maioria das normas e convenções internacionais.

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Até agora, todos os acordos alternativos que foram propostos acabaram por ser revelar problemáticos. A título de exemplo, se o Reino Unido liberalizar as suas políticas comerciais e regulatórias, os trabalhadores britânicos poderão acabar por ficar pior do que estavam sob o regime comunitário. Inevitavelmente, cada passo concreto dado em direcção à saída da União Europeia irá levar a uma fragmentação cada vez mais profunda.

 

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Olhando para o futuro, existem dois cenários possíveis para a política britânica. O primeiro é o cenário Hamlet, em que o caos continua até que o Reino Unido se despenhe fora do mercado único europeu e da união aduaneira. Essa etapa estará repleta de cadáveres políticos, seguindo-se um desastre económico.

 

No segundo cenário, o senso comum prevalece: o pragmatismo ao estilo de Macron ganha raízes no Reino Unido, suplantando o estilo de Poujade que alimentou o populismo anti-UE da campanha do "Leave". E isso supõe que o Macronismo será bem sucedido a nível europeu, de modo a poder funcionar como uma protecção contra a política distorcida e disfuncional dos Estados Unidos, Rússia e Turquia e contra a nova instabilidade na Alemanha.

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Esse resultado seria também Shakespeariano e assemelhar-se-ia grandemente a ‘Bem Está o que Bem Acaba’ – uma das comédias mais sombrias de toda a obra de Shakespeare.

 

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Harold James é professor de História e Relações Internacionais na Universidade de Princeton e membro sénior no Center for International Governance Innovation.

 

Copyright: Project Syndicate, 2017.

www.project-syndicate.org

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Tradução: Carla Pedro

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