Depois de décadas sem guerra, a Europa voltou às trincheiras após a invasão da Ucrânia pela Rússia. Mas só acordou verdadeiramente para esta realidade no momento em que perdeu o seu mais antigo aliado. O regresso de Donald Trump à Casa Branca obrigou a União Europeia a olhar de frente para o problema, colocando o pé no acelerador do investimento em defesa. O objetivo é rearmar, mas isso traz custos que podem ser avultados, forçando uma realocação de orçamentos, nomeadamente os do Estado Social.
"Se calhar não podemos continuar a investir tanto no Estado Social", alertou Noémia Goulart, do Conselho de Finanças Públicas, no painel sobre os "Desafios europeus na nova (des)ordem. Competitividade, Estado Social e Defesa", no âmbito da Grande Conferência do Negócios Sustentabilidade 20|30. "É inevitável uma dinâmica mais lenta", rematou, afastando, contudo, a ideia de haver um retrocesso neste que tem sido um desígnio dos Estados europeus nestas décadas de paz. "Portugal foi um dos países que beneficiou do dividendo da paz", lembrou.
A especialista diz que o "investimento na defesa não tem de comprometer a despesa no Estado Social", mas terá de haver menor investimento neste, ainda que diga que é "difícil reunir apoio para redução nesta despesa". Mas lembra que "há margem de manobra para fazer melhorias na gestão da despesa pública". Por exemplo, na "saúde pode ajustar-se [o orçamento] e afetar menos recursos sem que isso se traduza numa redução do serviço". "Há uma oportunidade para na revisão da despesa pública e olhar para áreas onde se possa reduzir despesa", remata.
"A questão da defesa tem de ser pensada com tempo, demora o seu tempo. É preciso planear", principalmente num país em que a margem orçamental é curta. Lembrando a clausula para a defesa, que permite que as verbas não contem para o saldo orçamental, Noémia Goulart lembra que o dinheiro gasto "conta". "Não deixa de criar despesa e dívida publica, e a dívida tem de ser paga", rematou.
A anomalia dos EUA
A necessidade de investimento em defesa existe. Ficou visível com a mudança de poder nos EUA, mas não irá alterar-se no futuro. "A América deixou de ser a América", alertou Armindo Monteiro, presidente da CIP, afastando a ideia de que o regresso de Trump à Casa Branca não se tratou de uma anomalia. "A América já teve duas anomalias. E há outra em preparação, que é J.D. Vance. Não é uma anomalia", advogou.
A Europa tem de conviver com esta nova realidade. "Quando falamos nas fragilidades da Europa, Portugal é dos mais frágeis da Europa", alerta, apontando o dedo, entre outros, às fracas políticas que têm sido adotadas no sentido de criar uma economia mais resiliente.
"Eu tenho muito respeito pela política, mas não pela politiquice e muito menos pela partidarite", disse, acrescentando que "em Portugal temos lógica de facilitismo. De prometer o que é imediato. E isso é uma ilusão". Uma crítica aos políticos que neste momento estão em campanha para as novas legislativas, que vão realizar-se a 18 de maio. É por isso que, remata, diz que "estamos a abandonar a liderança de um país" com esta forma de fazer política.
Ameaça às democracias
Este contexto de guerra traz um desafio adicional às democracias ocidentais. "Os EUA perderam a bússola moral ao voltarem a querer Trump" na Casa Branca e isso "tem consequências para nós", diz Germano Almeida. Embora reconhecendo que a "Europa responde melhor em momentos de crise", lembrando a crise das dívidas, o Brexit, entre outras, Germano Almeida, comentador, diz que tem "dúvidas se as democracias europeias vão resistir".
Com países mais frágeis, a Rússia pode ver o seu poder reforçado. Depois de alertar que o rearmamento é uma tarefa difícil, já que "não há equipamento militar nas prateleiras. Só se faz com encomendas e demoram imenso tempo", o Major General José Filipe Arnaut Moreira, deixou o alerta sobre as potenciais intenções da Rússia após o ataque à Ucrânia.
"O Kremlin não vai desafiar quem o possa derrotar. Mas a Europa pode ser derrotada", atirou. "A Lituânia será a primeira vítima após a Bielorrússia", antevê, lamentando que não se atue para evitar que tal aconteça. "A Ucrânia é o melhor teatro de operações para travar a Rússia. Estamos a arriscar fazer pior. Ter de ir defender os Bálticos. Se não formos capazes de deter a Rússia na Ucrânia, não vamos conseguir fazê-lo nos Bálticos", disse.