Não há transição energética sem pensar a relação entre ambiente e economia, nem entre a tecnologia e a sociedade. Esta foi uma das ideias centrais durante o segundo almoço-debate do Conselho Estratégico do projeto Negócios Sustentabilidade 20|30, que decorreu no Pestana Palace, em Lisboa. Seguindo as regras de “Chatham House”, segundo as quais não se identifica quem fez as declarações, os participantes refletiram sobre os desafios de um país que quer acelerar a neutralidade carbónica ao mesmo tempo que enfrenta instabilidade global e uma revolução tecnológica que promete reconfigurar por completo a economia.
Os participantes refletiram sobre os desafios de um país que quer acelerar a neutralidade carbónica ao mesmo tempo que enfrenta instabilidade global e uma revolução tecnológica que promete reconfigurar por completo a economia.
A necessidade de “reavaliar o caminho para 2050” foi uma preocupação transversal, tendo em conta que os pressupostos que, em 2019, levaram à aprovação do Roteiro para a Neutralidade Carbónica deixaram de existir. Desde então, o país enfrentou uma pandemia, o estalar da guerra na Ucrânia e uma crise energética que, a par do aumento acentuado dos investimentos para cumprir o Fit for 55, levam à necessidade de repensar prioridades. E, como se lembrou na sala, “o dinheiro é pouco”.
Do outro lado da balança está a tecnologia e, em particular, a inteligência artificial (IA), que é olhada tanto como oportunidade quanto como ameaça. A par do potencial que traz ao aumento da eficiência, lembrou-se também o consumo voraz de energia que representa. A Agência Internacional de Energia estima, aliás, que os centros de dados e redes de IA possam mais do que duplicar o seu consumo elétrico global até 2030, aumentando ainda mais a necessidade de energia limpa, barata e estável. Vários participantes sublinharam que a IA é “inevitável na eficiência”, indispensável para casar oferta e procura num sistema elétrico cada vez mais dependente de renováveis, mas reconheceram, por outro lado, que esta tecnologia levanta novos dilemas ambientais que é importante considerar.
Na distribuição, competitividade é uma das palavras de ordem e, para isso, a IA é uma poderosa aliada. Os dados, garante-se, já permitem gerir stocks com mais precisão, reduzir o desperdício alimentar ou antecipar tendências de consumo, ganhos que muitas das empresas já estão a ver na prática. Ainda assim, a previsão é que haja necessidade de formar 100% dos colaboradores deste setor até 2030 para assegurar capacidade de lidar com as novas ferramentas tecnológicas. Neste campo, os números apontam que apenas 10% das empresas portuguesas usam IA, um valor abaixo da média da União Europeia, e com enorme disparidade de utilização entre as PME e as grandes organizações.
Mas há outras atividades, como na logística e gestão de resíduos, em que a IA é vista como multiplicadora da capacidade analítica. Entre simulações avançadas, metaversos industriais e a utilização de modelos preditivos, há um mar de oportunidades para ganhos de eficiência em operações complexas como a recolha e triagem de resíduos. Há, contudo, um padrão que se repete à mesa do Pestana Palace: a tecnologia é usada, mas raramente sai da fase experimental. É o que alguém classifica como “armadilha do piloto”, um cenário em que repetidamente se criam projetos-piloto para testar novas soluções de IA que depois não chegam aos processos críticos – aqueles onde, sublinha-se, está o verdadeiro potencial transformador para as empresas.
Várias vozes defenderam que a IA pode democratizar o acesso a mercados e reforçar as PME em setores tradicionais, enquanto outras foram mais pessimistas e apontaram que a infraestrutura digital mundial é dominada por um oligopólio, com cerca de 75% da cloud europeia controlada por três empresas norte-americanas. No debate, recomenda-se que as organizações incorporem ferramentas de IA e outras, mas que tenham atenção à gestão dos dados de clientes e fornecedores, em especial quando usados em plataformas externas. A criação de modelos internos de IA pode ser uma solução, embora acessível apenas às maiores. Certo é, como é recordado numa das cadeiras, que os ataques cibernéticos às empresas e infraestruturas críticas continuam a aumentar, e que a soberania dos dados é hoje tão importante quanto a soberania territorial.
Um salto de produtividade
O país vive uma situação próxima de pleno emprego, mas continua abaixo da média europeia na produtividade por hora trabalhada, num problema crónico que continua sem resolução. Para muitos participantes, a chave não está em discutir se a IA vai destruir empregos, mas antes em saber se as pessoas e as empresas vão conseguir usá-la bem e depressa. Isso implica redesenhar processos, reorganizar dados, capacitar trabalhadores e integrar a IA no recrutamento como uma competência básica, não um extra. A OCDE tem sublinhado que países envelhecidos, como Portugal, precisam de automação inteligente para crescer sem aumentar a força de trabalho.
O potencial da IA no setor público foi outro ponto quente da conversa, com participantes a defender que Portugal tem uma “oportunidade única” para modernizar serviços públicos sem despedimentos, como já acontece em países como a Estónia ou a Dinamarca. A lentidão administrativa, consideram, é há muito um bloqueio ao investimento e ao funcionamento da economia, pelo que integrar IA em processos de saúde, justiça, segurança social ou fiscalidade permitiria acelerar decisões e melhorar a relação dos cidadãos com o Estado. “Deixar que as decisões se tomem numa folha de Excel e que se use algo mais moderno”, ironiza um dos membros do Conselho Estratégico.
Com os avanços da tecnologia e, em particular, da IA, chegam também as preocupações sobre a ética. À medida que o mundo se aproxima de tecnologias de inteligência aumentada, como interfaces cérebro-computador já hoje testadas por empresas como a Neuralink, a dúvida já não é se será possível, mas como e até onde se deve avançar. Até porque, como várias vozes à mesa assinalam, tornam-se mais evidentes as desigualdades sociais e a tecnologia, se não for regulada, vai aumentar o fosso entre ricos e pobres. “A filosofia vai voltar a ser necessária”, comentou um dos presentes.
A chegada do café coincide com uma das grandes questões estratégicas, que é perceber como é que Portugal se posiciona neste novo tabuleiro e se tem, ou não, capacidade para se afirmar. Para alguns dos presentes, não se trata de olhar o país como líder na produção tecnológica porque a competição é muita e tem muito capital disponível. O verdadeiro centro da discussão, apontam, é saber aproveitar a tecnologia para catapultar a economia e, ao mesmo tempo, tirar partido da energia verde e barata (uma das mais baratas da Europa) para atrair investimento externo. A isso juntam-se ainda a infraestrutura de fibra ótica e o ecossistema de startups cada vez mais dinâmico como trunfos que o país deve saber jogar. Mas há riscos claros que não podem ser esquecidos, como a falta de capital, o excesso de burocracia e a crescente “colonização económica” por empresas e talentos estrangeiros altamente competitivos.
À saída, o diagnóstico parece ser consensual. Portugal é um país pequeno, mas com localização e recursos estratégicos cujo valor aumenta num mundo cada vez mais tecnológico e dependente de IA. A janela de oportunidade para que a economia nacional dê o salto existe, mas é preciso capacitar recursos e ter visão estratégica.
