Esta não é a América
Num dos momentos cruciais de "Se esta rua falasse", a mão de Tish, uma das personagens principais deste poderoso livro de James Baldwin, diz: "Quem descobriu a América merecia ser arrastado até casa, acorrentado, para morrer." É uma frase devastadora e que acaba por ser o resumo do pensamento central da novela: para que é que foi criada a América, se o resultado foi uma sociedade opressora? Baldwin dá a voz aos americanos que não são brancos, centrando-se sobretudo em duas personagens principais, Fonny e Tish.
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Os dois apaixonam-se, ela fica grávida de Fonny, mas este acaba por ir parar à prisão, acusado de um crime que não cometeu. As famílias de ambos acabam por tentar libertar Fonny da prisão. E é essa sensação de injustiça, sempre repetida, que acaba por motivar as palavras da mãe de Tish, como se fosse o eco de séculos de opressão a virem ao cimo, como a lava de um vulcão adormecido.
Fonny não está só perante esta opressão constante: Daniel, um seu amigo, também foi preso com base numa premissa falsa e acabou humilhado por anos de detenção. O terror psicológico é aquilo que Fonny mais teme. Muito mais do que o castigo físico ou a pena de morte. Porque a tortura psicológica acaba por transformar os seres humanos em verdadeiros bonecos.
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James Baldwin escreveu este romance em 1974, um ano fulcral na sociedade norte-americana: Richard Nixon é forçado a resignar, atormentado pelo escândalo Watergate, e Gerald Ford ocupa a presidência. A guerra do Vietname aproxima-se do fim e Muhammad Ali e George Foreman lutam em Kinshasa pelo título mundial de boxe. Só que este é também o combate de uma parte da sociedade negra mais radicalizada contra a que se integrou no sistema.
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O livro de Baldwin tem muito que ver com este confronto, porque abrange também os nativos de Porto Rico, com outras influências culturais. Não escapa a ironia gritante do título original do livro ("If Beale Street Could Talk", que se transfere para a tradução portuguesa). Sente-se sempre nestas páginas uma lógica de revolta apaixonada, que tem também que ver com a postura de Baldwin na luta pelos direitos cívicos nos EUA nessas décadas de ferro e fogo. Afinal, ele foi amigo de Martin Luther King e de Malcolm X, que foram assassinados nessas tormentas. E que parecem ser sempre fantasmas que percorrem estas páginas.
Porque Baldwin sente que tem o dever de gritar o que os outros calam. Isso ficou evidente quando escreveu uma carta a Angela Davis, durante o julgamento desta, onde se lia: "O triunfo americano - onde a tragédia americana esteve sempre implícita - foi fazer com que os negros se desprezassem a si próprios".
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Este tema tornou-se recorrente nas suas obras, de que este livro é um exemplo perfeito. O livro transformou-se agora num filme, que um dia destes talvez surja por aí. E aí haverá a hipótese de confrontar esta escrita confrontacional com as imagens do grande ecrã.
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Roberto Bolaño continua a ser uma fonte quase inesgotável de inéditos. Aqui surgem três narrativas suas, "Pátria", "Sepulcros de Cowboys" e "Comédia de Horror em França". Na primeira, reflecte sobre o golpe de Estado no Chile que afastou Salvador Allende. No conto que dá título ao livro, recupera o personagem Arturo, que está a fazer uma viagem do Chile para o México e o Panamá e onde se encontra com um padre jesuíta a quem pede para ler um texto de ficção científica que anda a escrever. Narrativas típicas do que sempre escreveu Bolaño.
Roberto Bolaño
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Sepulcros de Cowboys
Quetzal
188 páginas, 2018
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O lugar de Fátimana cultura portuguesa
Fátima continua a ser um epicentro incontornável quando se fala da cultura portuguesa. Muitos caminhos sobre o destino nacional cruzam-se ali e alimentam outros sonhos e pesadelos. Com a sua habitual sapiência, Miguel Real reflecte sobre o tema, mostrando como Fátima, de alguma maneira, veio substituir o mito sebastianista, que sempre envolveu a sociedade portuguesa. Uma reflexão extremamente aliciante sobre Portugal e os portugueses. E sobre aquilo em que eles acreditam.
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Miguel Real
Fátima e a Cultura Portuguesa
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D. Quixote
207 páginas, 2018
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Em busca do escudeiro Fernão Lopes
Em 1506, o jovem escudeiro Fernão Lopes (que não é o conhecido cronista que viveu um século antes) parte rumo à Índia. Tal como outros, busca riqueza e também honra. Mas aí converte-se ao Islão e casa com uma muçulmana, acabando por lutar contra os seus próprios compatriotas. Quando regressa a Lisboa, depois de ter sido capturado, abandona o navio e fica a viver, só, na ilha de Santa Helena. Uma aventura sobre a solidão através da pena do historiador A. R. Azzam, que acaba por nos fazer pensar sobre a possibilidade da redenção.
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A. R. Azzam
O Outro Exílio
Editorial Presença
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324 páginas, 2018
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