Da vindima à garrafa. Vinho bebe-se cada vez mais sustentável
Do recurso a técnicas de produção diferenciadas até à aposta no biológico ou em garrafas ecológicas. Independentemente da forma e grau de investimento, o vinho combina (cada vez mais) com sustentabilidade.
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Foi em 2020 que a Herdade do Peso lançou à terra as sementes da sua própria transformação. Depois de um "profundo estudo dos solos" da propriedade alentejana que adquiriu no ano de 1997, a Sogrape enveredou por uma "abordagem completamente diferente": não só apostou forte em técnicas de produção sustentáveis na nova vinha, como também devolveu à natureza chão que um dia deu uvas. E hoje, ao mesmo tempo que produz vinho, alimenta o objetivo de recuperar a flora e fauna que ali vingaram antes de a campanha do trigo, posta em marcha pelo Estado Novo nos anos 1930, tomar os campos de Vidigueira.
"Antes ocupávamos 100% - não se deixava nada, mas depois do estudo decidimos plantar apenas onde acreditamos que podemos produzir as melhores uvas, por isso, 40% da área que antigamente estava plantada com vinha foi libertada", contextualiza Luís Cabral de Almeida, enólogo responsável, desde 2012, pela Herdade do Peso. A propriedade, uma das principais da maior empresa portuguesa de vinhos, estende-se por 465 hectares, dos quais 162 de vinha e 100 de olival (explorados por parceiros), estando os restantes reservados ao equilíbrio dos ecossistemas e a corredores naturais.
Dos 162 hectares de vinha, 40 correspondem à nova plantação que marca um ponto de viragem. A começar desde logo pela adoção de "sistemas de condução das vinhas muito mais amigos da videira, muito menos agressivos": "Entre outros, passamos para a poda em 'Guyot' (simples e duplo) e também fomos buscar a poda tradicional antiga do Alentejo, que dispensa postes e arames, em vaso", explica. Esta última, conhecida como "Gobelet", aplicada em 10 dos 40 hectares, por ser "muito exigente ao nível da mão de obra", corresponde, aliás, a seu ver, à "máxima expressão de cuidado com o meio ambiente". Porquê? "A planta fica mais baixa, logo precisa de menos água. Só aí estamos a contribuir para preservar algo que vai ser cada vez mais escasso e que é importante para outras culturas mais diretamente relacionadas com a alimentação humana. Além disso, como é retumbante, permite produzir os cachos à sombra e conseguimos ter vinhos mais frescos". E todo este modelo será a referência para as vinhas vindouras: "Isto é o futuro. Em 2027 vamos reconverter mais 20 hectares dentro deste conceito."
Já onde deixou de plantar vinha, a Sogrape quis aproveitar para "dar um contributo importante" na hora de preencher esse vazio e avançou com um estudo de biodiversidade para perceber o que existia antes da campanha do trigo do Estado Novo que obrigou as gentes a ceifar a fertilidade de terras boas com o intuito de "recuperar a floresta do Baixo Alentejo". "Conseguimos identificar 157 espécies, desde as plantas mais pequeninas até às de grande porte e plantámos 37 das que nos faltavam, como azinheiras e freixos, das quais oito estavam em vias de extinção". E com a flora vem a fauna, com o levantamento a identificar 25 tipos de borboletas e libelinhas, 10 mamíferos e oito répteis, complementa Luís Cabral de Almeida.
Imagens do antes e depois permitem ver mudanças: de um lado, "tudo industrializado sob a forma de quadrados e retângulos", do outro, vinha plantada conforme o tipo de solo e castas adaptadas e pelo meio biodiversidade. "Tudo o resto sem vinha - 40% - são manchas de biodiversidade", enfatiza o enólogo, avistando um potencial escudo contra pragas. "Acreditamos - e há estudos sobre isso - que com estes corredores estamos a criar para ter os predadores necessários para diminuir os químicos para combater, por exemplo, alguns aranhiços, que são ácaros, que picam a folha e tiram a clorofila da qual ela precisa para trabalhar", sublinha.
Conquistar os resultados pretendidos levará tempo, afinal, como sinaliza, basta pensar que uma azinheira demora 30 anos a crescer. "Na enologia, na viticultura, na agricultura é tudo a longo prazo. Estamos a trabalhar com a natureza e não há nada rápido. Temos que assumir isso - é um custo necessário", vinca Luís Cabral de Almeida. E, por essa razão, pode não estar ao alcance de todos. "Para se ter uma propriedade com esta abordagem é preciso, antes de tudo, vontade, e depois condições económicas e técnicas, porque são realmente investimentos de muito largo prazo", diz o responsável da Herdade do Peso, donde anualmente saem, em média, 2,5 milhões de garrafas.
Luís Cabral de Almeida nota que "felizmente" parece existir um "movimento" em torno da sustentabilidade na produção de vinho. “Há gente preocupada, a fazer coisas de diferentes maneiras”. A produção biológica constitui uma forma de o fazer. O enólogo garante não ter "absolutamente nada contra", mas aponta ser preciso ver para lá do que diz o rótulo. "Existem viticulturas com responsabilidade, igualmente válidas sem serem biológicas", sublinha. E dá um exemplo: "Tenho colegas em agricultura biológica que gastam o dobro do gasóleo, que andam duas vezes mais em cima das videiras com os tratores para trás e para frente porque os produtos realmente não são tão eficazes, logo têm que fazer o dobro dos tratamentos".
A Sogrape figura como uma mais de 50 empresas que obteve a certificação segundo o Referencial Nacional de Certificação de Sustentabilidade do Setor Vitivinícola, criado em 2022, por iniciativa do Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) e da ViniPortugal. A Symington Family Estates, maior dono de quintas do Douro, foi a primeira a obtê-la, no ano seguinte.
Mas há muitos outros "selos" de sustentabilidade dentro e fora de portas. Cá, sensivelmente uma década antes, por exemplo, foi criado o Programa de Sustentabilidade dos Vinhos do Alentejo, coordenado pela respetiva Comissão Vitivinícola. A Mainova faz parte da lista. Bárbara Monteiro, proprietária da Herdade da Fonte Santa, em Arraiolos, produz atualmente 100 mil garrafas por ano na propriedade dos pais, com 200 hectares, dos quais 20 de vinha e 90 de olival, que funcionam em mosaico para assegurar a biodiversidade.
Os pais que ali plantaram há 15 anos vendiam a granel, mas a preocupação ambiental já existia, patente, de resto, numa "minicentral fotovoltaica". Quando a filha - mais nova - decide mudar de vida, despedir-se do emprego na área da comunicação em Lisboa e rumar ao Alentejo para dar uma nova vida à propriedade põe a sustentabilidade em toda a linha. Afinal - explica - "não poderia ser de outra maneira estando a entrar no mercado em 2020" com uma marca própria.
"É muito importante para nós a relação com a natureza. Todo o produto é pensado nessa lógica. Se não cuidamos também não conseguimos ter um produto de qualidade. E todos os dias é possível melhorar, acrescentar algo", frisa.
Além de ter produção 100% biológica, "sem herbicidas nem químicos", a Mainova adota "práticas regenerativas, como a manutenção do coberto vegetal para preservar biodiversidade e os solos". Ainda do lado do impacto ambiental, aposta na rega eficiente, com a ajuda de sensores, contando com uma charca para aproveitar a água da chuva, uma vez "sem acesso à da rede". Esse tipo de práticas estende-se à energia, explica Bárbara Monteiro, indicando que atualmente a herdade produz o que consome, e chega também às embalagens. As garrafas - produz sensivelmente 100 mil por ano - são de vidro 100% reciclado e reciclável, os rótulos e caixas feitos de papel reciclado ou com alta percentagem de algodão, as cápsulas nas garrafas deram lugar a lacre biodegradável, elenca.
Em paralelo, corre outros projetos no campo social que vertem resultados no domínio ambiental. A título de exemplo, no inverno, 250 ovelhas da vizinhança vão para a propriedade: "deixamos de ter necessidade de adubo e de usar tanto o trator", sublinha. Bárbara Monteiro concede que as opções sustentáveis "ainda são mais caras", mas aponta que abrir a propriedade ao enoturismo "fez uma diferença muito grande". "Quem vem e vê valoriza", sublinha.
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