Na indústria da construção, 92% dos materiais atualmente disponíveis não respondem às exigências do presente, devido ao elevado carbono incorporado, baixa circularidade e toxicidade para pessoas e ambiente. Foi a partir desta constatação que nasceu o projeto Mykor, cuja subsidiária portuguesa, Biofab, foi distinguida com o Prémio Nacional de Inovação na subcategoria Indústria, Metalomecânica e Equipamentos.
A empresa, que está a desenvolver a próxima geração de isolamentos biológicos para construção, capazes de substituir tijolos, blocos e espumas tradicionais, tem uma proposta ambiciosa: criar soluções que combinem desempenho técnico, segurança contra incêndios e circularidade, ao mesmo tempo que sequestram carbono e utilizam resíduos industriais como matéria-prima.
Olivia Page, cofundadora e CEO da Mykor, explicou que a origem do projeto partiu precisamente dessa constatação de que a grande maioria dos materiais usados na construção são inadequados para os desafios atuais, nomeadamente o alto carbono incorporado, a toxicidade (para os seres humanos e para o planeta) e a baixa circularidade. “Com formação em arquitetura e ciências dos materiais, identificámos o potencial do micélio para criar soluções isolantes regenerativas que substituem blocos, espumas e tijolos, com menores emissões e melhor desempenho ambiental.”
Micélio, resíduos industriais e química verde
O processo, explica a cofundadora, combina ciência e circularidade. “O micélio é o motor biológico: transforma resíduos agroindustriais, como palha, serrim ou fibras têxteis, num compósito estrutural, leve e isolante”, detalha Olivia Page. A biotecnologia do micélio é complementada por processos de química verde, eliminando solventes tóxicos ou adesivos sintéticos. “Combinamos isso com processos de química verde, sem solventes tóxicos ou adesivos sintéticos, para garantir um material biodegradável, seguro e reciclável, desde a origem até ao fim de vida.”
Este enfoque, diz a executiva, permite criar materiais não só ambientalmente neutros, mas regenerativos. Ou seja, aproveitam resíduos que, de outra forma, seriam descartados e transformam-nos em componentes de alto desempenho para a construção.
O produto desenvolvido pela empresa chama-se MykoSIP, um painel isolante estrutural baseado em micélio, e garante a CEO que os resultados já obtidos colocam-no à frente da maioria das soluções tradicionais, como o tijolo ou o poliuretano. “O nosso sistema MykoSIP reduz o carbono incorporado em até 60% por metro quadrado em relação a paredes convencionais com tijolo e poliuretano. Não emite compostos voláteis (VOC), tem elevada respirabilidade e oferece melhor desempenho acústico e térmico. Tudo com uma pegada de resíduos praticamente nula e origem 100% renovável.”
Além da performance ambiental e energética, a Mykor garante também a segurança em matéria de incêndios. “O MykoSIP foi testado para resistência ao fogo com classificação Euroclasse B, superando muitos produtos convencionais”, sublinha Olivia Page.
O ciclo de vida do produto é igualmente pensado para a circularidade. A CEO destaca que “é circular por design: feito de resíduos e, depois, no fim da sua vida, recebemos os produtos de volta e fazemos outros sem precisar de centros de reciclagem. Isso é a magia do micélio.” Cada metro quadrado construído com este sistema evita, em média, 118 kg de emissões de CO2 em comparação com uma parede convencional (cavity wall).
Cumprindo simultaneamente critérios de performance, segurança e sustentabilidade que raramente coexistem no setor, Olivia Page pretende que a Mykor se posicione como uma alternativa disruptiva, capaz de responder às novas exigências regulatórias e de mercado.
Aceitação do setor e primeiros contratos
A entrada da Mykor no setor da construção tem sido acompanhada de entusiasmo, sobretudo entre os agentes mais atentos às metas ambientais e de sustentabilidade. A cofundadora do projeto revela que “a resposta tem sido muito positiva, especialmente entre empreiteiros focados em offsite e promotores comprometidos com metas ESG”. O reconhecimento já se traduz em compromissos concretos. “Já firmámos acordos vinculativos com dois grandes parceiros para fornecimento de mais de 389 milhões de euros em MykoSIP, além de colaborações em desenvolvimento conjunto com arquitetos e engenheiros estruturais no Reino Unido e na Bélgica.”
A credibilidade do produto assenta em ensaios técnicos e certificações que demonstram a sua fiabilidade em obra. “Efetuámos ensaios de compressão, isolamento térmico, resistência ao fogo, envelhecimento e biodegradação em laboratórios acreditados segundo normas EN”, sublinha Olivia Page. Processos que a empresa considera cruciais não só para convencer o setor, mas também para garantir acesso a seguros, financiamento e validação técnica em projetos de construção. Neste momento, a empresa prepara a marcação CE, passo essencial para a comercialização alargada no mercado europeu.
Da investigação à escala industrial
No entanto, a transição de um material biológico de laboratório para uma solução replicável e estável em obra não foi imediata. “Desenvolver um material biológico estável, replicável e à prova de obra foi o maior desafio”, reconhece a CEO. Esse processo implicou dois anos de investigação intensiva, otimizando cepas, aperfeiçoando técnicas de pasteurização e secagem e recorrendo à automação controlada por inteligência artificial.
A chave para a escalabilidade esteve na inauguração da unidade piloto em Montemor-o-Novo, em Portugal, e no estabelecimento de parcerias industriais no Reino Unido e na Bélgica. Com estas estruturas, a Mykor passou da investigação para a produção com escala suficiente para responder a encomendas de grande dimensão.
No panorama global da construção sustentável, a Mykor já parece ter conquistado um lugar de destaque. Olivia Page sublinha que “somos uma das poucas empresas a combinar biotecnologia aplicada à construção com provas reais de escala e tração comercial. Enquanto muitos projetos em biomateriais estão em fase laboratorial, a Mykor já tem produção ativa, acordos comerciais robustos e uma rota industrial clara.”
Mas a aposta em inovação não se esgota no MykoSIP. A empresa prepara já a expansão para novos produtos que exploram o mesmo núcleo biotecnológico. “Estamos a expandir para duas novas linhas: MykoBead, isolamento por injeção, e componentes estruturais com geometrias avançadas. Estas soluções partilham o mesmo núcleo biotecnológico e visam mercados complementares, como retrofit, divisórias internas e estruturas leves.”
Desta forma, a empresa procura consolidar a sua presença em diferentes segmentos da construção, alargando as aplicações do micélio e explorando mercados que valorizam cada vez mais a circularidade, a eficiência energética e a redução de carbono.
Reconhecimento com o PNI
O percurso foi distinguido em 2025 com o Prémio Nacional de Inovação, na categoria Indústria, Metalomecânica e Equipamentos. Para a equipa, o galardão representa mais do que um selo de prestígio. “É um marco simbólico e estratégico. Valida anos de investigação e coragem empreendedora e dá-nos visibilidade num setor muitas vezes resistente à mudança”, afirma Olivia Page.
A CEO destaca ainda que o reconhecimento é uma alavanca para novas oportunidades. “Mais do que um troféu, este reconhecimento abre portas com instituições, financiadores e reguladores, consolidando a confiança no nosso modelo de inovação profunda com impacto climático real.”