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Inteligência artificial obriga universidades a reinventar-se

Inteligência artificial, gamificação, realidade aumentada e valores éticos estão a transformar o ensino superior. O desafio não é apenas tecnológico, passa também por repensar a forma como se ensina, como se aprende e qual deve ser o papel da universidade na formação do futuro.

27 de Maio de 2025 às 14:00
Horacio Villalobos
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A inteligência artificial generativa, como o ChatGPT, é já uma presença habitual nas salas de aula da Nova SBE.

A transformação do ensino superior já não se resume à digitalização de conteúdos ou à transição para formatos híbridos. O que está verdadeiramente em causa é a redefinição do próprio ato de ensinar e de aprender, numa era em que a inteligência artificial e a ciência de dados colocam novos desafios à academia. Longe de ser um processo meramente tecnológico, a inovação pedagógica implica, dizem os especialistas, repensar metodologias, currículos, espaços de aprendizagem e a relação entre docentes e estudantes, com impacto direto na preparação dos futuros profissionais.

Na Nova SBE, a inovação pedagógica deixou de ser um conceito abstrato para se tornar prática corrente e transversal. "Temos vindo a investir de forma consistente na inovação pedagógica, com o objetivo de tornar a aprendizagem mais envolvente, participativa e alinhada com os desafios do mundo real", sublinha Patrícia Xufre, diretora do Centro de Inovação Pedagógica da instituição. Este trabalho, segundo a responsável, tem assentado na adoção de metodologias ativas como o ‘flipped classroom’, o ‘game-based learning’ e a aprendizagem baseada em projetos reais, colocando os estudantes no centro do processo e com "um impacto muito positivo, tanto ao nível da motivação como dos resultados de aprendizagem".

A comunidade de aprendizagem Inteligência Artificial e Ensino, já vai na segunda edição e envolve mais de 60 docentes da Católica. Esta dinâmica tem sido essencial para promover uma literacia digital mais profunda e um "uso ético, responsável e crítico destas ferramentas. Diana Soares

Diretora do Católica Learning Innovation Lab, da Universidade Católica Portuguesa Porto

A tecnologia tem também um papel cada vez mais relevante neste ecossistema: "Mais de 80% dos nossos professores utilizam tecnologias no ensino - onde se destacam os questionários interativos e ferramentas de inteligência artificial generativa - e muitos procuram formas de tornar as suas aulas ainda mais participativas". A acompanhar este movimento está o próprio Centro de Inovação Pedagógica, que promove formação docente, disponibiliza recursos e acompanha a implementação das novas estratégias em sala.

O exemplo da gamificação

Entre os exemplos mais emblemáticos citado por Patrícia Xufre está o projeto ‘Calculus of Thrones’, uma experiência de gamificação que transformou o ensino de cálculo diferencial numa aventura inspirada no universo épico da série de televisão ‘Game of Thrones’. "O conteúdo matemático foi integrado numa narrativa interativa, com desafios, conquistas e rankings, o que resultou num aumento claro do envolvimento dos nossos alunos". O sucesso foi tal que o modelo começou a ser replicado noutras áreas. Para Patrícia Xufre, estes projetos "refletem o espírito experimental e colaborativo da escola, aliado à excelência pedagógica que procuramos cultivar na Nova SBE, onde os professores são verdadeiros agentes de inovação".

Temos vindo a investir de forma consistente na inovação pedagógica, com o objetivo de tornar a aprendizagem mais envolvente, participativa e alinhada com os desafios do mundo real. Patrícia Xufre

Diretora do Centro de Inovação Pedagógica da Nova SBE

A par das metodologias ativas, a Nova SBE tem vindo a integrar tecnologias emergentes de forma "estratégica e pedagógica", procurando formar gestores e líderes capazes de lidar com a complexidade dos tempos atuais. A inteligência artificial generativa, como o ChatGPT, é já uma presença habitual nas salas de aula. "Os professores aplicam-na para fomentar competências como pensamento crítico, síntese de informação ou desenvolvimento de apresentações", explica Patrícia Xufre. Também a análise de dados ganha relevância, sendo usada para monitorizar o progresso dos alunos e adaptar, em tempo real, a experiência de aprendizagem.

No plano das plataformas, ferramentas como Moodle, Wiseflow, Mentimeter ou SciSpace têm permitido uma maior personalização do percurso formativo e fornecem, explica a diretora, feedback imediato aos estudantes, incentivando a reflexão sobre o desempenho. Já a realidade aumentada e virtual encontra-se em fase de experimentação, com potencial para criar simulações de decisão em ambientes de elevada complexidade.

Através da sua divisão LIFT (Learning Innovation & Faculty Training), o Centro de Inovação Pedagógica está a desenvolver formações específicas nestas áreas e a apoiar os docentes na criação de novos recursos digitais. O objetivo, sublinha Patrícia Xufre, é garantir que "estas tecnologias servem um propósito pedagógico claro e alinhado com os desafios atuais da gestão".

Outro pilar da estratégia de inovação da Nova SBE reside na colaboração com edtechs e startups tecnológicas. "As edtechs são parceiros-chave na inovação do ensino superior", afirma a responsável. "Oferecem soluções ágeis, experimentais e centradas na experiência do utilizador, permitindo-nos testar e escalar rapidamente abordagens que respondem às necessidades reais dos nossos docentes e estudantes".

Novas metodologias e tecnologias

Também no campo da Medicina, a inovação pedagógica tem vindo a reformular-se, garante Helena Canhão, diretora da Nova Medical School. "Temos vindo a investir profundamente na melhoria contínua da forma como ensinamos, procurando sempre que esse ensino tenha mais qualidade, maior impacto e, sobretudo, que isso seja sentido e valorizado pelos nossos alunos". A transformação, explica a professora catedrática de Medicina, é abrangente e multiforme, passando pela renovação de conteúdos, adoção de novas metodologias e integração de ferramentas tecnológicas, sempre com uma preocupação central: medir o impacto real das mudanças e garantir que se está, de facto, a formar melhores médicos.

O currículo, salienta Helena Canhão, foi enriquecido com temas emergentes como os avanços na inteligência artificial, novas formas de diagnóstico, alterações climáticas ou diversidade, equidade e inclusão (DEI) - e assenta cada vez mais numa integração curricular horizontal e vertical. "Em vez de aulas fragmentadas por disciplina, os alunos experienciam sessões integradas", explica a profissional, apontando como exemplo as unidades de "Fundamentos", que articulam anatomia e fisiologia num contexto coerente e aplicado.

Temos vindo a investir profundamente na melhoria contínua da forma como ensinamos, procurando sempre que esse ensino tenha mais qualidade, maior impacto e, sobretudo, que isso seja sentido e valorizado pelos nossos alunos. Helena Canhão

Diretora da Nova Medical School

A componente prática é cada vez mais valorizada, com recurso a simulações clínicas, ‘role plays’ com atores e práticas em ambientes realistas como centros de simulação ou teatros anatómicos. "Este tipo de prática permite, inclusive, trabalhar o erro, algo essencial na formação médica, mas tradicionalmente pouco explorado". Tecnologias como a realidade aumentada, inteligência artificial e modelos 3D são aqui consideradas por Helena Canhão como aliadas estratégicas, promovendo uma aprendizagem mais segura e eficaz. Também os métodos de avaliação têm sido alvo de revisão, privilegiando sistemas contínuos e integrados, centrados em competências reais. "Desde os logbooks ao Exame Clínico Objetivo Estruturado (OSCE), passando pelas provas integradas e pela avaliação formativa, estamos a construir um sistema de avaliação mais justo, estruturado e alinhado com as exigências da prática médica contemporânea", sublinha Helena Canhão.

IA e análise de dados são exploradas

Na formação pré e pós-graduada, tecnologias emergentes como a inteligência artificial e a análise de dados são exploradas não só como ferramentas pedagógicas, mas como conteúdos essenciais do currículo. "Estamos a desenvolver cursos específicos sobre inteligência artificial, investigação clínica, bases de dados, estudos observacionais e real-world data", aponta a responsável, destacando ainda a criação de um laboratório de experimentação com IA no novo campus de Carcavelos. Nesse espaço, os alunos praticam procedimentos que são gravados e posteriormente revistos, num processo que combina treino técnico com feedback personalizado.

A relação com startups e edtechs é descrita como "absolutamente fundamental". Helena Canhão destaca o crescimento das áreas da biotech e medtech e a importância de preparar os profissionais de saúde para interagir com este ecossistema. "Estas startups oferecem oportunidades de colaboração extremamente enriquecedoras", refere. Exemplo disso são os bootcamps, hackathons e programas de aceleração que envolvem não só estudantes e docentes, mas também doentes e cuidadores.

Entre as iniciativas recentes, destaca-se um hackathon em parceria com uma farmacêutica, onde os alunos foram desafiados a resolver problemas de sustentabilidade e saúde, e um programa internacional de aceleração em colaboração com a Carnegie Mellon University.

Academia em transformação

Na Universidade Católica Portuguesa no Porto, a inovação pedagógica é indissociável da identidade humanista da instituição. "Os valores humanistas e de cuidado e valorização do próximo são marca identitária da Católica e das várias iniciativas em curso", afirma Diana Soares, diretora do Católica Learning Innovation Lab. A visão da inovação, acrescenta, "é entendida como processo de transformação de toda a comunidade académica", assente em sinergias interdisciplinares, partilha de boas práticas e uma lógica de melhoria contínua construída de forma colaborativa entre docentes, investigadores e estudantes.

A responsável explica que o laboratório de inovação pedagógica tem liderado este movimento, dinamizando workshops entre pares, comunidades de aprendizagem e projetos de investigação aplicada focados no impacto das práticas pedagógicas. A integração da tecnologia surge, segundo Diana Soares, como um dos temas centrais, com especial enfoque na promoção de abordagens ativas e centradas no desenvolvimento integral dos estudantes.

Entre os projetos em destaque está a criação de Comunidades de Aprendizagem e Prática entre docentes, que permitem testar e avaliar novas estratégias ao longo de um ano académico.

A preparação para um mundo digital e volátil é um eixo fundamental na estratégia pedagógica da Católica. Um dos pilares desta abordagem é o modelo de aprendizagem-serviço (ApS), em que os alunos desenvolvem projetos reais em contextos comunitários, aplicando conhecimentos académicos a desafios com impacto direto na sociedade.

IA cria novas unidades curriculares

Na linha da frente da transformação tecnológica, a engenharia é, por natureza, um campo particularmente sensível à atualização constante de métodos, conteúdos e competências. Esta visão, segundo o departamento de Engenharia Informática da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), traduz-se na criação de novas unidades curriculares em áreas como Inteligência Artificial, Cibersegurança, Engenharia Aeroespacial ou Sistemas Ciberfísicos, e na integração de projetos interdisciplinares com centros de investigação, empresas e entidades públicas.

A par da atualização técnica, há uma aposta clara nas aprendizagens ativas. "O uso de metodologias de ensino baseadas em projetos, desafios reais e laboratórios avançados tem permitido uma melhor preparação dos estudantes para contextos profissionais exigentes e em rápida mutação tecnológica". Ao mesmo tempo, a faculdade explica que a formação em competências transversais como pensamento crítico, comunicação e ética tem vindo a ser reforçada, preparando os alunos para desempenharem também papéis de liderança.

A ligação entre investigação e ensino tem igualmente sido uma mais-valia na introdução de tecnologias emergentes nas salas de aula. "O facto de o corpo docente da FEUP realizar investigação em áreas do conhecimento relacionadas com os Sistemas Imersivos e a Inteligência Artificial facilita a introdução destas tecnologias nos processos de ensino/aprendizagem". Entre as práticas mais recorrentes estão os jogos digitais e a gamificação, que têm sido usados tanto em aulas teóricas com recurso, por exemplo, à plataforma Wooclap – como em simulações ou projetos que envolvem a criação de jogos como atividade pedagógica.

"A utilização de tecnologias imersivas como a Realidade Virtual e a Realidade Aumentada também tem sido pilotada em algumas unidades curriculares", revela o departamento de Engenharia Informática da  FEUP, explicando que estas ferramentas permitem aos estudantes vivenciar ambientes industriais fora da sala de aula e interagir com diferentes dispositivos, à semelhança do que acontece no mundo real. Quanto à inteligência artificial, a utilização de ferramentas como o GitHub Copilot já é comum entre estudantes, estando também em curso a adesão à plataforma IAedu.pt, promovida pela FCCN, que dará acesso gratuito a modelos avançados de IA com salvaguardas de proteção de dados. "Estas plataformas assumem um papel cada vez mais relevante nos processos de ensino-aprendizagem", sustenta a FEUP. Por isso, estão em curso "processos de reflexão e de definição de linhas orientadoras para maximizar os seus benefícios e mitigar os riscos", promovendo uma utilização "responsável e transparente", sobretudo em trabalhos práticos e projetos.

Para assegurar que a sua oferta formativa se mantém atualizada, a FEUP atua em três níveis. "Ao nível estratégico", tem criado novos cursos em áreas emergentes, como a Licenciatura em Inteligência Artificial e Ciência de Dados, lançada em 2021/22, e o Mestrado em Inteligência Artificial, iniciado no presente ano letivo. "Ao nível tático", revê regularmente os planos de estudo, como no caso do Mestrado em Engenharia de Software, que reforçou a formação em IA, Cibersegurança, Verificação de Software ou Gestão de Produto. Já "a um nível mais operacional", as metodologias e conteúdos das unidades curriculares são ajustados anualmente com base no feedback dos estudantes e das entidades empregadoras, integrando "competências relacionadas com o estudo e uso eficaz e responsável" de tecnologias emergentes e promovendo também "criatividade, espírito crítico, colaboração e comunicação".

Por fim, a ligação à investigação e ao tecido empresarial reforça esta estratégia. "Os projetos integradores de licenciatura, as dissertações de mestrado e as teses de doutoramento são muitas vezes desenvolvidos em estreita articulação com centros de investigação, empresas e organismos públicos". Este cruzamento entre ciência e prática tem sido decisivo para "formar profissionais altamente qualificados, capazes de aplicar o conhecimento em contextos reais e de gerar inovação com impacto".

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