As tecnologias, nomeadamente a Inteligência Artificial (IA), que há poucos anos estavam reservadas a laboratórios ou a grandes empresas, começam agora a transformar processos fabris, cadeias de valor e modelos de negócio em setores tão diversos como a cerâmica, os semicondutores, a metalomecânica ou a indústria de componentes automóveis. Em Portugal, o potencial é significativo, mas os especialistas alertam que a sua adoção está longe de ser linear. Entre as evidentes oportunidades e os obstáculos ainda consideráveis, a indústria portuguesa debate-se com a urgência de acelerar esta transição. Um dos problemas reside na desigual maturidade digital das empresas e dos setores, na escassez de dados e na necessidade de requalificar 71% da força de trabalho até 2030. Estas são as principais razões que continuam a travar o ritmo da adoção.
O tema foi amplamente discutido na conferência “Indústria: o poder transformador da Inteligência Artificial”, promovida pelo INEGI, onde especialistas, empresários e académicos partilharam visões sobre o presente e o futuro da inteligência artificial no tecido industrial. Uma das conclusões foi clara: embora a tecnologia esteja mais acessível do que nunca, a sua adoção eficaz exige mudanças profundas nas organizações, investimento sustentado e uma atenção redobrada às competências das pessoas.
“Portugal tem uma tradição tecnológica forte e uma população muito recetiva à adoção de novas tecnologias”, afirmou Daniel Pina, responsável da área de Digitalização Industrial do INEGI. No entanto, há ainda um longo caminho a percorrer. Não tanto no desenvolvimento de grandes modelos de IA, onde a competição internacional é dominada pelos Estados Unidos e pela China, mas sobretudo, diz o responsável, “na capacidade de integrar e utilizar eficazmente essas tecnologias no contexto específico da indústria nacional.”
O tecido empresarial português, maioritariamente composto por PME, enfrenta um desafio estrutural. A maturidade digital continua a ser muito desigual entre empresas e setores. Como referiu Jorge Ferreira, diretor de TI da Amkor Portugal, “as nossas empresas são ainda muito manuais. Não fizeram um investimento tão forte quanto seria de esperar no âmbito da Indústria 4.0, e isso limita a base sobre a qual se pode construir soluções de IA.”
Mesmo assim, há exemplos que mostram que é possível avançar. Na Vista Alegre, uma empresa com mais de 200 anos de história, a inteligência artificial já está presente em várias áreas. Diogo Teixeira, responsável de manutenção industrial, descreveu como a empresa integrou sistemas de visão artificial para deteção de defeitos em peças cerâmicas, soluções de otimização logística e até plataformas inteligentes para gestão documental. “Não se trata apenas de substituir tarefas. Trata-se de aumentar a fiabilidade dos processos e libertar as pessoas para funções de maior valor acrescentado”, sublinhou.
Repensar funções e perfis profissionais
Este aspeto humano é, aliás, um dos pontos críticos na transformação em curso. A inteligência artificial não elimina apenas tarefas repetitivas, também obriga a repensar funções e perfis profissionais. Goreti Marreiros, presidente da Associação Portuguesa para a Inteligência Artificial, deixou o alerta. “Setenta e um por cento da força de trabalho em Portugal vai precisar de formação até 2030. A transformação é inevitável e temos de preparar as pessoas para ela.”
Como se pode fazer essa preparação? Na experiência da Bosch Industry Consulting, o envolvimento das pessoas desde o início dos projetos é essencial. Tiago Sacchetti, diretor ibérico da Bosch Industry Consulting, explicou que “os trabalhadores que participam no desenho e implementação das soluções acabam por se tornar os seus maiores promotores”. Na Vista Alegre, o uso de realidade aumentada para mostrar aos operadores como as novas máquinas funcionariam foi decisivo para reduzir resistências e aumentar a aceitação.
Outro desafio central é a qualidade e a disponibilidade dos dados. “Não se faz IA sem dados com qualidade”, frisou Daniel Pina. Muitas empresas começam por não ter dados suficientes ou não ter dados estruturados. ”É necessário tempo para construir essa base. Também é preciso mudar mentalidades. O maior obstáculo não é tecnológico. É cultural”, reforçou Jorge Ferreira.
Mesmo em empresas tecnologicamente avançadas, como a Amkor, que produz semicondutores e onde a inteligência artificial já inspeciona centenas de milhões de chips por dia, nem tudo corre sempre como planeado. “Nem todos os projetos de IA atingem os objetivos. Mas mesmo os que falham ensinam e contribuem para a maturação das equipas e dos processos”, afirmou Jorge Ferreira.
Tiago Sacchetti acrescentou que a evolução recente das tecnologias, como o retrieval augmented generation (RAG), tem democratizado o acesso à IA. “Hoje, soluções que antes exigiam investimentos muito elevados estão ao alcance de muitas empresas, se forem bem enquadradas e se houver uma estratégia clara de integração.”
Mas integrar não chega. É preciso medir. E aqui, um tema transversal emerge: a sustentabilidade. A IA pode ajudar a reduzir desperdícios, otimizar consumos energéticos e tornar processos mais eficientes. Mas também tem a sua própria pegada ecológica. “Não sabemos ainda se o balanço global é sempre positivo”, admitiu Daniel Pina. Em algumas aplicações, o aumento do consumo energético devido ao uso de modelos complexos pode anular parte dos ganhos obtidos. Outro fator que condiciona a velocidade de adoção é o quadro regulamentar. A Europa tem liderado na criação de legislação para uma IA ética e segura, mas isso também impõe constrangimentos. “Estamos a regular por cima de uma regulação já muito densa e isso cria barreiras à inovação”, alertou Daniel Pina. Na perspetiva das empresas, é essencial encontrar um equilíbrio que garanta segurança e ética sem sufocar a competitividade.
Grandes grupos têm... grande responsabilidade
Neste contexto, o papel dos grandes grupos industriais e dos centros tecnológicos torna-se ainda mais relevante. Tiago Sacchetti defendeu que “os grandes grupos têm a responsabilidade e a capacidade de transferir conhecimento e boas práticas para as PME, ajudando a acelerar o ecossistema”. Iniciativas como as agendas mobilizadoras ou programas colaborativos mostram que esse caminho é possível. No fundo, como resumiu uma das intervenções, o maior risco hoje é não agir. A velocidade da transformação é tal que ficar parado pode significar perder competitividade de forma irreversível. Como referiu Tiago Sacchetti, “o que nos separará não será tanto quem tem a melhor tecnologia, mas quem conseguir aplicá-la mais depressa e de forma mais eficaz”.
E se há incertezas sobre o impacto da IA em postos de trabalho ou em equilíbrios sociais, há também uma convicção crescente de que o futuro passará, inevitavelmente, por um tecido industrial onde a IA esteja integrada em praticamente todos os níveis, desde o chão de fábrica até às decisões estratégicas.
Transformar e valorizar o conhecimento
A importância de transformar e valorizar o conhecimento para a indústria foi também sublinhada por Sílvia Garcia, administradora da Agência Nacional de Inovação (ANI). “Este tema de indústria, poder transformador e inteligência artificial é realmente muito pertinente, urgente e emergente que todos temos de pensar”, afirmou. A responsável recordou o seu percurso profissional ligado à indústria e à aplicação prática da IA. “Durante oito anos, a minha vida foi trazer inteligência artificial para a indústria. Sinto na pele e conheço bem todos os problemas relacionados com a implementação da inteligência artificial na indústria.”
Sílvia Garcia destacou o esforço contínuo de aproximar o conhecimento académico da realidade empresarial. “Uma das áreas em que trabalhamos é exatamente isto, tratar de trazer o conhecimento da academia para a indústria e colá-lo na indústria.” Esta missão tem vindo a ser desenvolvida através de vários programas nacionais e europeus, incluindo iniciativas lançadas no âmbito do Portugal 2020, redes de interface, colabs e, mais recentemente, os programas PREC, TSBS e os Digital Innovation Hubs (DIH).
“É uma grande batalha, é preciso muita resiliência. Os resultados não são tão rápidos quanto nós queremos”, reconheceu, sublinhando ainda a complexidade da negociação com a Comissão Europeia e a multiplicidade de regras associadas aos financiamentos.
A intervenção trouxe também uma visão concreta da dimensão dos investimentos já realizados em Portugal no domínio da IA. No programa Horizonte Europa, entre 2021 e 2024, Portugal conseguiu captar 244 milhões de euros para projetos colaborativos entre empresas e academia na área da IA.
No âmbito do Portugal 2020, o investimento público em IA ascendeu a 306 milhões de euros, com um investimento total de 524 milhões de euros por parte de empresas e academia. Em testbeds foram financiados 12 projetos, num investimento de 45 milhões de euros, e nos DIH, seis projetos com um investimento global de 33 milhões de euros.Apesar destes números encorajadores, Sílvia Garcia frisou que o verdadeiro desafio reside na implementação prática dentro das empresas. “É necessário começar a implementar e as empresas perceberem e compreenderem o conhecimento e o que tem de ser trabalhado.” Sílva Garcia deixou um desejo para o futuro. “É preciso reforçar a importância da colaboração entre academia, redes de interface, colabs e empresas para transferir, valorizar e ajudar as empresas a compreender como aplicar” a inteligência artificial de forma eficaz e sustentável.”