No universo da cibersegurança e da defesa europeia, o projeto Discretion tornou-se um marco histórico. Coordenado pela Indra Deimos, em consórcio com parceiros nacionais e internacionais, foi o primeiro projeto liderado pelo país no âmbito do Fundo Europeu de Defesa. O objetivo era construir uma rede segura baseada em redes definidas por software (SDN) e, em simultâneo, desenvolver dois sistemas inovadores de soberania tecnológica: uma máquina de cifra nacional e nós de distribuição de chaves quânticas (QKD). Na prática, o projeto combina redes flexíveis controladas por software com novas tecnologias de encriptação: uma máquina de cifra nacional, que garante comunicações seguras com tecnologia portuguesa, e nós quânticos que distribuem chaves de encriptação impossíveis de copiar, mesmo em caso de tentativa de ataque.
A dimensão do investimento, mais de seis milhões de euros cofinanciados pela Comissão Europeia, Ministério da Defesa Nacional, Estado-Maior-General das Forças Armadas, Gabinete Nacional de Segurança (GNS) e empresas privadas nacionais, demonstra, segundo a empresa, a aposta clara em posicionar
Portugal como exportador de tecnologias críticas para a soberania cibernética e criptográfica.
Esse caminho de inovação e afirmação foi reconhecido com o Prémio Nacional de Inovação 2025 em Cibersegurança, distinção que, no entender de Catarina Cabral Bastos, head of Secure Communications and Quantum Technologies Division na Deimos Engenharia, representa o culminar de uma jornada de excelência. “O PNI 2025 em cibersegurança foi a cereja no topo do bolo no fim de um projeto com muito sucesso, que dignificou em tudo Portugal, a indústria e a academia portuguesas que desenvolveram tecnologia nacional de ponta na área das comunicações seguras para a Defesa”, afirma a responsável.
Para Catarina Cabral Bastos, este prémio não só valoriza o projeto como valida a capacidade nacional de estar na linha da frente de áreas emergentes. Nas suas palavras, “foi valorizar ao mais alto nível um projeto liderado por Portugal e pela Indra Deimos em Portugal e fortemente apoiado pela Defesa portuguesa e pelo Gabinete Nacional de Segurança (GNS). E abre assim caminho para uma estratégia nacional a nível das tecnologias quânticas, mostrando que Portugal acompanha o progresso e o desenvolvimento de tecnologias emergentes a nível europeu”.
Um precedente para o setor
A liderança portuguesa no Discretion é considerada pela Indra Deimos um precedente importante para o setor, sendo “exemplo de que Portugal pode e consegue liderar projetos tecnológicos a nível da Defesa Europeia”, sublinha Catarina Cabral Bastos. O segredo esteve na articulação entre indústria, academia e instituições públicas. “O sucesso deveu-se a uma sinergia enorme entre a academia, que já tinha nos seus laboratórios alguma desta tecnologia, a indústria, como a Indra Deimos, que quer apostar em novos produtos, e os utilizadores das instituições públicas como o Ministério da Defesa Nacional, o GNS e o Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA). Sem este esforço conjunto não seria possível”.
Essa experiência deixou também um legado para o futuro. A responsável destaca que “abriu-se um precedente de que nós, portugueses, também podemos liderar grandes projetos”. E conclui que o desafio compensou “pela tecnologia desenvolvida e pelo reconhecimento europeu da liderança portuguesa”, criando condições para que outras entidades nacionais sigam o mesmo caminho.
Um dos pontos centrais do Discretion foi o desenvolvimento de dois elementos críticos para a soberania tecnológica, uma máquina de cifra nacional e nós quânticos de última geração. Questionada sobre os maiores desafios desta etapa, Catarina Cabral Bastos admite que o mais difícil foi conquistar o próprio projeto europeu, “dado que estes projetos do Fundo Europeu de Defesa em geral demoram algum tempo a ser aprovados e têm um grande trabalho administrativo, para além do lobby político de grandes países europeus, que acabam por deixar alguns dos projetos portugueses sem acesso a financiamento”.
A partir daí, explica, o caminho seguiu a lógica de transformar conhecimento científico em protótipos aplicáveis. “Foi fazer o caminho natural, pegando em todo o bom trabalho científico e desenvolver protótipos que possam ser usados em redes de comunicações seguras. Obviamente que houve desafios em termos de timings, mas que foram colmatados com uma boa gestão de recursos”. A articulação entre utilizadores, academia e indústria acabou por simplificar o processo, com cada parte a assumir um papel fundamental.
No entanto, sublinha que os desafios não ficaram resolvidos com a conceção dos protótipos. “Claro que agora existem outros desafios que passam pelo teste e certificação desta tecnologia, mas esse é um problema mundial e que a Europa está a tentar colmatar com projetos como o Nostradamus, que tenta criar um laboratório europeu para testar a tecnologia, e trabalhando em conjunto com as Autoridades Nacionais de Segurança dos Estados-Membros”.
Reforço da soberania nacional e europeia
A responsável salienta que o impacto da tecnologia do Discretion no reforço da soberania nacional e europeia em cibersegurança foi sempre um dos objetivos principais. “Somos um país pequeno que precisamos concentrar as nossas necessidades. Havia a necessidade de deixar de pagar quantias avultadas a uma empresa estrangeira para estabelecer cifras entre dois pontos. Havia a necessidade de criar uma máquina de cifra nacional feita por entidades nacionais”.
Segundo Catarina Cabral Bastos, este desígnio foi concretizado no quadro de um projeto europeu ambicioso, pensado para servir a Defesa Europeia, mas também para capacitar Portugal com tecnologia própria. “Um dos objetivos de Portugal no projeto foi não só desenvolver a máquina de cifra nacional, que agora poderá ser usada a nível soberano, como também desenvolver a tecnologia para distribuir as chaves a nível quântico”.
A máquina de cifra portuguesa, explica, “pode receber chaves de sistemas quânticos mas também dos clássicos”, o que lhe confere maior flexibilidade e utilidade operacional. Do lado da Defesa, o sistema desenvolvido substitui os atuais métodos de distribuição manual de chaves, permitindo maior segurança “devido às propriedades dos sistemas quânticos. Em caso de interceção no processo de distribuição da chave por um atacante, este é detetado devido às propriedades do sistema quântico”.
Aplicação prática
A aplicação prática desta tecnologia terá o seu primeiro grande teste no âmbito do EuroQCI, a iniciativa europeia para criar uma infraestrutura de comunicações quânticas que proteja dados de forma soberana em todos os Estados-Membros. “Portugal, um ano após ter ganho e começado o Discretion, iniciou também o seu segmento terrestre do EuroQCI, o PTQCI, ligando quatro áreas de soberania em Lisboa. No PTQCI, o GNS voltou a ser um exemplo na Europa, sendo parceiro do projeto e apoiando a implementação no terreno desta rede de comunicações quânticas”, refere.
De acordo com Catarina Cabral Bastos, até ao final de 2025 a tecnologia do Discretion será testada em conjunto com outras soluções europeias na rede PTQCI e “possivelmente num backbone nacional”, consolidando a integração desta inovação no esforço europeu de cibersegurança.
Outro aspeto decisivo no sucesso do Discretion foi a articulação de um consórcio multinacional, que reuniu entidades de quatro países europeus. Para Catarina Cabral Bastos, o processo foi surpreendentemente simples. “O consórcio criou-se de uma forma muito natural. Isto é, a nível nacional foi muito fácil e os parceiros europeus vieram de seguida já conhecidos de alguns dos parceiros nacionais. Foi uma conjugação perfeita”.
Em Portugal, participaram cinco entidades com papéis complementares: a Indra Deimos, enquanto coordenadora; o grupo do Instituto de Telecomunicações em Aveiro, liderado pelo professor Armando Pinto, especializado em sistemas de comunicações quânticas; o Instituto Superior Técnico, através do professor Ricardo Chaves, que desenvolveu a primeira versão da máquina de cifra; a Altice Labs, responsável pela inovação em redes definidas por software; e a Adyta, PME do Porto de referência em cibersegurança, que assegurou a análise de segurança no desenvolvimento do sistema.
A este núcleo juntaram-se parceiros de Espanha, Itália e Áustria. “Adicionámos ao consórcio a experiência dos dois parceiros espanhóis, Telefónica e Universidad Politécnica de Madrid, que têm uma rede quântica e definida por SW em operação em Madrid há já algum tempo, o Austrian Institute of Technology (AIT), que está no centro de todos os desenvolvimentos europeus de tecnologia quântica, e uma PME italiana líder na tecnologia de redes definidas por software”, detalha. O balanço não podia ser mais positivo: “A prova desta facilidade de trabalhar neste consórcio, que mais foi uma família, é o sucesso deste projeto!”
Interesse internacional
A responsável acrescenta que a máquina de cifra e os nós quânticos desenvolvidos em Portugal já despertaram interesse de outros Estados-Membros, enquanto a investigação nacional se destaca também no quadro da NATO, com os testes realizados a serem considerados pela responsável como decisivos para comprovar a robustez da tecnologia. “O grande esforço colocado na fase de validação foi recompensado, dado que conseguimos demonstrar que o sistema Discretion é válido em diferentes ambientes”, afirma. As demonstrações decorreram em cenários distintos: numa tenda durante o exercício NATO REPMUS24 organizado pela Marinha Portuguesa, na REPER em Bruxelas - onde foi realizada uma videochamada segura entre a representação portuguesa e a Comissão Europeia -, no salão FEINDEF e ainda no Cyber Academia and Innovation Hub.
Em todos estes contextos, foi possível estabelecer uma rede definida por software a controlar três nós quânticos, consumindo chaves para comunicações seguras. “Conseguimos não só mostrar que as máquinas de cifra as consomem para estabelecer ligações seguras (como uma videochamada), mas também podem ser usadas em rádios para comunicações militares numa missão”, explica Catarina Cabral Bastos.
Os resultados validaram a aposta portuguesa. “Em todas estas demonstrações o objetivo foi cumprido e os utilizadores, não só Portugal, mas também o Ministério da Defesa espanhol e o Ministério da Defesa austríaco, conseguiram validar a tecnologia”.
A ambição da Indra Deimos não se esgota no setor da Defesa. A tecnologia desenvolvida no âmbito do Discretion pode ser aplicada em várias áreas críticas da sociedade. “Pode obviamente ser uma mais-valia em todas elas. No contexto do EuroQCI e do PTQCI vamos poder mostrá-lo. Por exemplo, na saúde e em particular na medicina genómica é possível ver a mais-valia da distribuição quântica de chaves, usando a computação segura”, refere Catarina Cabral Bastos.
A responsável destaca que estes métodos permitem calcular sem revelar os valores iniciais usados no processo, protegendo dados sensíveis e inferindo resultados conjuntos com segurança. Para além da saúde, setores como a energia e as telecomunicações estão entre os potenciais beneficiários de uma infraestrutura baseada em distribuição quântica de chaves. “Hoje em dia existem duas formas de proteger a criptografia usual de ataque de computadores quânticos: o uso da distribuição quântica de chaves ou o uso de algoritmos pós-quânticos. Para áreas de soberania, e apesar da recomendação das NSA europeias ser de usar sistemas híbridos com as duas tecnologias, devemos apostar nos sistemas físicos (quânticos), que nos permitem uma maior proteção. E esse será o objetivo de agora em diante: construir uma infraestrutura nacional que possa ter vários utilizadores”.
As oportunidades de mercado internacional surgem agora como a próxima etapa deste percurso. “Alguns, dado que desenvolvemos alguma da tecnologia para ser usada a nível militar (com mais restrições que a civil) e que agora pode ser usada em contexto de soberania. Os nossos produtos, em primeiro lugar, estarão definitivamente no mercado nacional, mas também podem ir para o mercado europeu e serem operacionalizados na grande rede europeia”, explica a responsável.
O futuro, acredita a responsável, está a chegar mais depressa do que se pensava. “As tecnologias quânticas já não são uma miragem, mas sim estão a estabelecer-se no mundo de hoje, trazendo muitas vantagens. Sem dúvida que há um novo mundo à nossa espera nas redes de comunicação quânticas e que Portugal, felizmente, está também na linha da frente.”