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Quando, em 1997, José Neves terminou o curso de Engenharia Aeroespacial no Instituto Superior Técnico, a maioria dos recém-licenciados procurava oportunidades de trabalho fora do país. Foi o caso de metade dos colegas desse curso. A outra metade, a que permaneceu em Portugal, trabalha maioritariamente em outros setores de atividade. Passados 28 anos, o cenário é muito diferente. O AED Cluster, que inclui as áreas Aeronáutica, Espaço e Defesa, conta com mais de 150 entidades, entre grandes grupos internacionais como a Airbus ou a Embraer, PME nacionais e institutos de investigação, e estima chegar às 160 antes do verão. O setor representa cerca de 20 mil postos de trabalho qualificado e atingiu, em 2024, um volume de faturação de 2,1 mil milhões de euros. Em 2019, o cluster contava apenas com 63 entidades e uma faturação de 1,1 mil milhões de euros, representando um crescimento exponencial em ambos os indicadores em cinco anos.
A ambição do cluster é duplicar estes números até 2030 e representar 3% do PIB. "Vamos conseguir não só porque estes mercados são altamente emergentes, mas porque as empresas portuguesas têm apostado cada vez mais neste setor. E isso traz uma grande responsabilidade ao cluster, sobretudo na missão de colocar estas empresas a trabalhar em conjunto", afirma José Neves, presidente do AED Cluster Portugal e diretor de Segurança Interna e Defesa na GMV, no Inovcast, o podcast do Prémio Nacional de Inovação.
O país tem uma oportunidade única de se afirmar como um player relevante nos setores da aeronáutica, espaço e defesa. Para isso, é preciso agir com rapidez, profissionalismo e uma articulação eficaz entre a indústria, as Forças Armadas, a academia e o Governo, para não perder as oportunidades que o mercado e a conjuntura geopolítica colocam ao setor. "O futuro está a ser construído aqui. Temos uma oportunidade única. E não a podemos desperdiçar", diz José Neves.
Mudança de fornecedores a integradores
A transformação do setor em Portugal está a ser feita por via de projetos de inovação estruturantes. No programa Aero.Next Portugal destaca-se o desenvolvimento da aeronave LUS 222, uma aeronave regional ligeira com uso dual, civil e militar, desenhada em Évora e cuja montagem será feita em Ponte de Sor. Trata-se da primeira aeronave desenvolvida, fabricada e comercializada em Portugal, de raiz, para integrar sistemas de propulsão convencionais, híbridos e elétricos. Um projeto desenvolvido pelo CEiiA – Centro de Engenharia e Desenvolvimento de Produto, em parceria com a Força Aérea Portuguesa e a Geosat.
No espaço, o programa New Space Portugal permitiu já o lançamento do PoSAT-2, da LusoSpace, primeiro satélite comercial português, e prevê-se a colocação em órbita de 28 novos satélites nos próximos anos. No campo dos veículos suborbitais, o projeto VIRIATO desenvolve tecnologia de ponta para testes em ambiente espacial.
Estes projetos envolvem consórcios vastos que incluem empresas como a Tekever, Almadesign ou GMV e entidades como o INEGI, ISEP ou o Instituto Superior Técnico. "Estamos a passar de um papel de fornecedores de componentes para OEMs nacionais – integradores finais de soluções tecnológicas com base em Portugal", afirma José Neves. Esta mudança é disruptiva para a indústria nacional, permitindo criar e controlar cadeias de valor completas a partir do território nacional.
A força do ecossistema
Esta evolução não seria possível sem um ecossistema colaborativo e maduro. O AED Cluster tem promovido a aproximação entre empresas, instituições científicas e autarquias. "Há dez anos era mais fácil colaborar com empresas estrangeiras do que com portuguesas. Hoje é o contrário. Trabalhar em conjunto permite acelerar conhecimento, desenvolver capacidades e responder a concursos internacionais de grande escala", explica José Neves.
Exemplo disso é o projeto FlyPT, na área da mobilidade aérea urbana, que junta grandes e pequenas empresas, institutos e centros de investigação num consórcio coeso, já com um protótipo em fase avançada. Ou o projeto ARX, liderado pela Tekever, que está a desenvolver um drone de 650 kg – uma classe acima do habitual, com exigências técnicas e de certificação mais elevadas.
Além da indústria e da academia, também os municípios têm um papel ativo, atraindo investimento, impulsionando formação local e integrando-se em estratégias de desenvolvimento industrial e tecnológico.
Talento, formação e salários acima da média
O crescimento do setor tem gerado uma crescente procura por perfis técnicos e científicos altamente especializados. "Precisamos de engenheiros, programadores, especialistas em materiais, técnicos com formação aeronáutica. E pagamos acima da média nacional", sublinha José Neves. De acordo com dados do cluster, os salários médios no setor AED são cerca de 43% superiores aos praticados, por exemplo, na indústria automóvel.
O Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) desempenhou um papel-chave na criação de competências específicas para a indústria aeronáutica, desde a instalação das fábricas da Embraer em Évora, em 2012. E a própria criação da Agência Espacial Portuguesa veio consolidar o posicionamento estratégico do país no domínio do espaço.
A inovação é a nova defesa
José Neves é claro. "A defesa já não é só armas e balas. Hoje, é sobretudo inovação." A guerra na Ucrânia veio acelerar a transformação tecnológica das forças armadas europeias. A inteligência artificial está a ser integrada em sistemas de comando e controlo, em munições inteligentes e em novas plataformas de combate.
A aposta no uso dual da tecnologia desenvolvida para a defesa é vista como essencial. Os mesmos desenvolvimentos podem ter uma aplicação civil, aumentando a escalabilidade e a viabilidade económica dos projetos. "Um drone ou um satélite pode servir tanto para fins militares como para monitorização ambiental, gestão florestal ou segurança marítima", afirma.
Neste contexto, o European Defence Fund surge como uma ferramenta importante para alavancar projetos de I&D com forte potencial de industrialização. Mas é preciso mais. "Se queremos transformar os investimentos em resultados concretos, é necessário um alinhamento entre o Ministério da Defesa, o da Economia, o da Educação e o da Ciência. Só assim teremos capacidade de resposta e sustentabilidade no longo prazo."
Agir com rapidez, decidir com visão
A guerra trouxe urgência. E trouxe também uma oportunidade única para Portugal. Mas exige capacidade de execução. "Precisamos de tomar decisões rápidas e eficazes. O tempo político não pode ser o tempo do setor. Os investimentos em defesa são estratégicos e exigem planeamento a médio e longo prazo", alerta.
Um dos grandes riscos que identifica é a morosidade da decisão europeia: "Enquanto os EUA fecharam mais de 1400 negócios com startups de defesa num só semestre, a Europa teve apenas 30. Se não atuarmos agora, perdemos a corrida da inovação para os Estados Unidos e para a Ásia."
José Neves defende, por isso, que a Europa deve acelerar os programas de investimento, nomeadamente o plano "Rearm Europe", e apostar em processos de decisão mais ágeis. E reforça que "investir em defesa é investir em soberania e em indústria. O Primeiro-Ministro tem razão quando diz que não é despesa – é investimento com retorno."
Conhecimento, visão e ambição
Para as empresas que querem entrar neste ecossistema, Neves deixa um conselho claro: "Conheçam o cluster. Participem nos nossos eventos. Falem com quem já está dentro. Há oportunidades para empresas industriais, tecnológicas e até do setor automóvel que queiram diversificar."
Mas reforça que é fundamental compreender os requisitos técnicos e legais do setor, especialmente na área da defesa, desde a certificação de produtos à regulamentação de exportações, passando pelas exigências do Gabinete Nacional de Segurança e do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
O evento AED Days, promovido pelo AED Cluster, será uma das plataformas para facilitar este contacto e dinamizar o networking entre empresas, forças armadas e entidades governamentais.
Europa como motor de inovação
Apesar dos desafios, José Neves é otimista quanto ao papel da Europa como gerador de inovação. "Na transição verde, a Europa está na linha da frente. E temos de continuar a investir em tecnologias como o SAF (sustainable aviation fuel), o hidrogénio ou a navegação quântica, que podem ser aplicadas transversalmente nos três setores."
A importância da inovação é também visível no papel do design. José Neves destaca o livro "Design Thinking", de Joana Mendonça e Guilherme Victorino, como uma obra que mudou a sua forma de pensar produtos e soluções. Para finalizar, recomenda "Genesis", de Henry Kissinger e Eric Schmidt, como leitura essencial para entender o impacto transformador da inteligência artificial.