Apesar de Portugal estar entre os países com menor confiança na Inteligência Artificial (IA), a adoção da tecnologia em contexto profissional é elevada. Esta é uma das principais conclusões do estudo global “Confiança, utilização e atitudes em relação à IA”, conduzido pela KPMG em parceria com a Universidade de Melbourne. Com base em respostas de mais de 48 mil pessoas em 47 países, incluindo mais de mil inquiridos portugueses, o trabalho revela uma tensão estrutural entre aceitação prática e reservas éticas, que se repete em várias geografias, mas assume contornos particulares em Portugal.
Segundo os dados recolhidos, apenas 36% dos portugueses afirmam confiar na IA, abaixo da média global de 46%. Ainda assim, 70% admitem utilizá-la no seu trabalho diário. Ao Negócios, João Sousa Leal, head of advisory da KPMG Portugal, considera que “este sentimento de dualidade não é exclusivo dos portugueses, mas há, de facto, um duplo sentimento”, explicando que “esta dualidade pode ser explicada, essencialmente, pelo ainda diminuto conhecimento que a maior parte dos utilizadores têm de como funciona a IA, mas pela quase inevitabilidade de serem utilizadores diários desta tecnologia”.
A normalização do contacto com a IA, mesmo que muitas vezes inconsciente - “numa simples utilização de um smartphone ou no contacto com uma rede de apoio ao cliente”, diz João Sousa Leal -, contribui para esta aparente contradição. Mas há mais fatores a pesar na equação, como o desconhecimento generalizado sobre a regulação existente. “Apesar de estar a ser desenvolvida legislação a nível internacional, como o AI Act e a sua respetiva transposição nacional, por vezes ainda não há conhecimento suficiente por parte dos utilizadores de IA de que esta legislação existe”, refere o responsável da KPMG.
A isto somam-se razões culturais. A rapidez com que os portugueses aderem a novas tecnologias contrasta com os baixos níveis de literacia digital, o que, segundo João Sousa Leal, contribui para “uma menor confiança relativamente às tecnologias emergentes, ainda que isso não impeça os portugueses de as usarem”.
Riscos, benefícios e um país preocupado com a ética
O estudo revela ainda que 88% dos inquiridos nacionais reconhecem benefícios no uso da IA, enquanto 85% estão preocupados com os seus potenciais efeitos negativos. Esta tensão entre otimismo e prudência é visível na perceção dos riscos e das vantagens: “o risco mais identificado pelos inquiridos portugueses (57%) é a perda de interação humana e ligação entre as pessoas quando se usa IA”, afirma João Sousa Leal. Globalmente, os maiores riscos apontados são a cibersegurança e a desinformação.
Já nos benefícios, Portugal destaca-se pelo pragmatismo: “em Portugal destaca-se o acesso mais rápido a informação e a redução do tempo gasto em tarefas repetitivas (77%)”, enquanto internacionalmente se valoriza mais o aumento de eficácia e eficiência no quotidiano das equipas de trabalho.
Em matéria de confiança, Portugal posiciona-se abaixo da média, mas à frente de países como Finlândia (25%), Japão (28%) ou Alemanha (31%). “Portugal, neste aspeto, está em linha com aquilo que é evidenciado por parte das economias avançadas e com maiores níveis de literacia”, sublinha o responsável da KPMG. A Nigéria (79%), a Índia (76%) e o Egipto (71%) lideram a lista de países com maior confiança na IA.
O estudo revela um forte desejo de regulação entre os portugueses. Cerca de 80% consideram-na necessária e 89% defendem medidas legais para combater a desinformação gerada por IA. O receio de manipulação eleitoral por bots ou sistemas automatizados é também expressivo: 75% temem esse cenário, face a uma média global de 64%.
“Aumentar a literacia deve ser garantido pelos governos nos programas de educação e nas empresas com programas de formação, que possam ajudar as pessoas a reconhecer conteúdos que são manipulados por IA, nomeadamente deepfakes”, afirma João Sousa Leal. O responsável alerta ainda que o problema da desinformação “não resulta apenas da IA, mas de um conjunto de fatores muito mais abrangentes, entre os quais se inclui a proliferação das redes sociais, que utilizam IA com um foco principal no aumento do número de utilizadores e do tempo de utilização”.
IA nas empresas: eficiência, riscos e necessidade de governação
Dentro das organizações, a IA é já um recurso generalizado: 70% dos portugueses afirmam utilizá-la no trabalho, mas 40% admitem ter cometido erros por causa da IA e 34% já a usaram de forma inadequada. Além disso, 61% basearam-se nos seus outputs sem os validar e 40% apresentaram conteúdos gerados por IA como sendo da sua autoria.
Neste contexto, João Sousa Leal defende que “há vários aspetos que poderão ajudar a assegurar a eficiência e qualidade no uso de IA, começando pela melhoria dos níveis de literacia”. Acrescenta que “é importante que continue a haver uma supervisão humana ativa sobre o trabalho que é desenvolvido pela IA” e que se devem aplicar “modelos de governo eficazes que não sejam uma barreira ao desenvolvimento, mas que assegurem a qualidade dos resultados, a segurança dos dados e os mais elevados padrões éticos”.
A KPMG, que desenvolveu o modelo “Trusted AI”, aposta em dez pilares éticos para orientar os seus projetos. “Asseguramos que o uso de dados, os modelos de governo e toda a utilização prática da IA cumpre os princípios éticos e regras de privacidade”, afirma João Sousa Leal, referindo ainda que o trabalho interno com os colaboradores e os programas de capacitação junto dos clientes visam garantir “uma utilização segura, rigorosa e responsável”.
No campo da governança, o responsável destaca oito princípios essenciais, desde “o desenvolvimento de um modelo de governo claro e percetível em todos os níveis da organização” até “a inclusão, de forma a garantir que as várias áreas da organização sejam envolvidas”. Só assim, defende, será possível assegurar um “uso ético, seguro e responsável de IA”, ao mesmo tempo que se desbloqueia “maior potencial de crescimento dos seus negócios no futuro”.
Apesar da desconfiança atual, João Sousa Leal acredita que “à medida que os níveis de literacia em IA começarem a aumentar, a confiança nesta tecnologia no nosso país, e especificamente na União Europeia e nas economias desenvolvidas, também possa vir a ser mais significativa”. No entanto, considera inevitável a persistência do paradoxo entre adoção e desconfiança: “este paradoxo sobre se a adoção e utilização de IA geram efeitos positivos ou negativos na sociedade manter-se-á durante muitos anos”.
Desconfiança comum nas economias avançadas
A posição de Portugal no panorama europeu espelha uma tendência mais ampla nas chamadas economias avançadas: elevados níveis de adoção da IA acompanhados de uma confiança moderada ou baixa. O estudo da KPMG e da Universidade de Melbourne mostra que apenas 39% dos inquiridos nas economias avançadas dizem confiar na IA - um valor ligeiramente acima dos 36% registados em Portugal, mas muito abaixo da média nos países emergentes, onde a confiança atinge os 57%.
Esta diferença estende-se também à aceitação e utilização da tecnologia. Nos países desenvolvidos, 65% demonstram algum nível de aceitação da IA, contra 84% nos mercados emergentes. Em matéria de literacia, apenas 32% dos inquiridos das economias avançadas reportam ter recebido formação em IA, face a 50% nos mercados emergentes. Portugal enquadra-se nestas métricas, com apenas 45% dos portugueses a afirmarem ter competências adequadas para usar IA, e 33% com formação específica.
Além da confiança, os dados do estudo revelam que a perceção de benefícios da IA também é mais elevada nos países emergentes. Cerca de 82% dos inquiridos nesses países afirmam já ter experienciado resultados positivos, comparando com 65% nos países avançados. Para João Sousa Leal, esta diferença pode estar relacionada com o “modo como a IA responde a necessidades estruturais em economias com menos acesso a recursos humanos qualificados, como na saúde ou na educação”.
Esta cisão entre regiões levanta uma questão estratégica relevante: o risco de que o ritmo assimétrico de adoção e confiança possa “reforçar a liderança de algumas geografias no uso de IA e, em contrapartida, deixar outras para trás”. Para Portugal, a solução poderá passar por “reforçar os programas de literacia, acelerar a aplicação de modelos de governação ética e investir numa comunicação mais clara sobre a regulação em vigor”, conclui João Sousa Leal.