
Novos materiais, sistemas autónomos, mobilidade aérea avançada, arquitetura aberta, interoperabilidade em tempo real, inteligência artificial, computação quântica e cibersegurança. Estes são conceitos que há poucos anos eram marginalmente debatidos no setor da defesa, aeronáutica e espaço, mas que hoje são palavras-chave numa transformação acelerada que está a mudar tanto os modelos de operação como as próprias cadeias de valor industrial.
Na 12.ª edição dos AED Days 2025, organizada no âmbito do projeto Global Connect, ficou claro que, num contexto global de grande incerteza, com a guerra na Ucrânia a demonstrar de forma brutal a necessidade de tecnologias ágeis e de resiliência industrial, a Europa enfrenta um desafio duplo: reforçar a sua autonomia estratégica e garantir competitividade num mercado global onde os players asiáticos e norte-americanos não abrandam.
Como sublinhou Ricardo Conde, presidente da Agência Espacial Portuguesa, “as agendas da segurança e da sustentabilidade devem caminhar juntas”. Para o responsável, “o espaço é hoje um eixo crítico para a soberania europeia” e não pode ser tratado como um domínio separado das tecnologias que têm impacto transversal na economia. E deixou um apelo: “Se todos quisermos, o mundo pode ser extraordinário”.
A visão da European Space Agency (ESA) vai no mesmo sentido. Heriberto Saldivar, head of Strategy da ESA, destacou que a nova Estratégia 2040 da Agência procura precisamente responder a este contexto, tornando o espaço europeu “mais resiliente, dinâmico e preparado para um cenário geopolítico em rápida mudança”. E acrescentou: “Portugal tem uma capacidade de absorção superior ao seu nível de contribuição. Está muito bem posicionado para crescer em domínios como observação da Terra, inteligência artificial e comunicações seguras”.
Mobilidade aérea avançada: um mercado em aceleração
Um dos domínios onde esta aceleração é visível é na mobilidade aérea avançada (AAM). Segundo Sven Kopera, da Roland Berger, “Portugal tem uma base sólida na AAM. Empresas como a Tekever são um excelente exemplo de sucesso e o projeto LUS-222 mostra o potencial para desenvolver aeronaves multimissão e tecnologias avançadas como a propulsão híbrida”.
O mercado global da AAM poderá atingir 60 mil milhões de euros até 2030, mas Sven Kopera alertou para o facto de estarmos ainda numa fase de transição. “Estamos no chamado vale da desilusão, mas isso é normal em ciclos de inovação. A confiança dos investidores pode ser reconstruída”, sublinhou, destacando que a chave passa por concretizar. “Temos as condições, agora é preciso executar”.
Se há lição que a guerra na Ucrânia trouxe a toda a indústria europeia foi a constatação de que a inovação não pode ser feita em ciclos lentos e isolados. Como afirmou o Chefe do Estado-Maior da Armada e Autoridade Marítima Nacional, almirante Jorge Nobre de Sousa, “hoje, não chega inovar à porta fechada. É preciso testar e iterar em ambientes reais, com os utilizadores”. E acrescentou que “a integração dos domínios marítimo, terrestre, aéreo, ciber e espacial não é mais uma aspiração. É um imperativo operacional”.
O responsável da Marinha Portuguesa defendeu uma mudança nos próprios modelos de relação entre indústria e Forças Armadas, nomeadamente passando “de uma lógica de comprador-fornecedor para parcerias ágeis e de cocriação. De ciclos de aquisição rígidos para iteração contínua”.
O general Cartaxo Alves, Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, reforçou esta visão. “Conectividade, conectividade e conectividade. É isso que permitirá garantir avaliação em tempo real, partilha de dados e de informação e tomada de decisão operacional eficaz”. Na transformação em curso da Força Aérea e Espacial, o espaço foi já definido como “o quinto domínio operacional”, com um papel crescente no apoio às missões e na construção de soberania.
O general destacou ainda o envolvimento da indústria nacional como fator essencial. “Contamos com a colaboração da indústria portuguesa para garantir a credibilidade e relevância no domínio aeroespacial”.
Parcerias industriais: visão de longo prazo
Do lado da indústria, a mensagem é igualmente clara: inovação aberta e colaboração sustentada. J. R. McDonald, da Lockheed Martin, admitiu estar “muito impressionado com a indústria portuguesa. Queremos estabelecer uma parceria duradoura que vá muito além de projetos individuais”.
A Lockheed Martin está já a trabalhar com a Força Aérea Portuguesa e com a indústria em áreas prioritárias como vigilância espacial, vigilância marítima, sistemas de gestão avançada do campo de batalha, comando e controlo, simulação e treino, inteligência artificial e cibersegurança. McDonald destacou que “Portugal está a ponderar integrar a família F-35” e que a missão da empresa, para já, é fornecer informação e aprofundar o trabalho com parceiros nacionais.
Também Nathalie Helal-Lambic, managing director da Airbus Portugal, destacou a evolução da presença industrial da empresa. “Portugal é hoje o 5.º maior país da Airbus na Europa em termos de footprint industrial” e sublinhou que “as equipas em Portugal participam diretamente no desenvolvimento e suporte a programas atuais e futuros da Airbus em todo o mundo”.
Flexibilidade e evolução contínua
Um dos exemplos mais emblemáticos de inovação contínua foi apresentado por Daniel Boestad, da SAAB. “Uma das lições que estamos a aprender, infelizmente, com a guerra na Ucrânia, é que a velocidade de mudança é realmente importante. Estamos a ver requisitos muito avançados que precisam de alterações em semanas, dias”.
O Gripen E, a versão mais recente do caça Saab JAS 39 Gripen, foi concebido com uma arquitetura aberta que permite precisamente esta agilidade. “Há quem chame a este tipo de sistema uma plataforma de sexta geração. Eu prefiro dizer que acrescentamos capacidades todos os dias. E é uma arquitetura aberta, podem colaborar connosco, escrever aplicações, desenvolver em conjunto”.
Este modelo de inovação foi também adotado pela Lufthansa Technik, que acaba de lançar em Santa Maria da Feira um novo centro europeu de MRO (manutenção, reparação e revisão). Volker Magunna, senior director do grupo, explicou que estão aqui “e queremos crescer convosco. Queremos colaborar com a indústria portuguesa e explorar oportunidades de trabalho conjunto”.
Inovação disruptiva: o valor da cocriação
A importância da cocriação foi sublinhada no painel dedicado às tecnologias disruptivas, com Ron Nulkes (Chair do NATO Industrial Advisory Group - NIAG), João Galego (Critical Software), Olivier Choury (MDA) e Hugo Chambel (AVP). “Mais do que nunca, inovação é cocriação, não isolamento”, defendeu Hugo Chambel. E acrescentou: “Inovação não é só novos produtos. É fazer melhor, mais inteligente, mais eficiente”.
João Galego alertou para os desafios específicos da certificação de IA em setores regulamentados: “Há ainda um enorme desafio nos processos de certificação e validação de IA em setores como o aeroespacial e a defesa, mas é crucial integrar estas tecnologias de forma ágil e segura”.
Já Ron Nulkes reforçou o facto de o governo dever ser “um patrocinador da inovação, e as PME não devem tentar fazer tudo sozinhas. Cooperação é essencial”.
Olivier Choury, da MDA, apresentou o projeto Chorus, uma constelação inovadora com dois satélites em “cross-cueing”, destacando que “este tipo de sistemas não se constrói sozinho, é essencial criar parcerias com startups e empresas inovadoras em toda a Europa”.
A visão do Exército: inovação com foco operacional
A culminar o debate sobre inovação, o tenente-general Maia Pereira apresentou a visão do Exército até 2045. O foco é claro, modernização acelerada e inovação colaborativa. “A hora da expectativa terminou. Agora é tempo de iniciativa”, afirmou. E foi taxativo. “Precisamos de inovação testada, industrializada e pronta a ser utilizada em curto prazo.”
O Exército está a preparar programas ambiciosos em áreas como sistemas de defesa aérea, renovação da artilharia, novas capacidades de engenharia, veículos blindados, sistemas C4I e forças especiais, sempre numa lógica de integração com a academia e a indústria. O general lançou também um convite às empresas para participarem em exercícios como o ARTEX 26, em Santa Margarida, onde poderão testar as suas soluções em ambiente operacional.
Se há consenso que emergiu deste encontro, foi o de que a inovação não é apenas um fator de competitividade, mas uma condição de soberania e de autonomia estratégica para Portugal e para a Europa. Tecnologias como inteligência artificial, sistemas autónomos, interoperabilidade em tempo real e modelos de arquitetura aberta estão já a moldar o futuro da defesa, da aeronáutica e do espaço.
O desafio agora é acelerar a execução, reforçar as parcerias e criar ecossistemas abertos e resilientes, capazes de transformar este potencial em valor económico e estratégico real.