Mário Negreiros 06 de Fevereiro de 2007 às 13:59

Body Count

Sob inspiração iraquiana, um grupo de cidadãos cariocas descrentes das contagens oficiais criou um sítio da Internet para contar os mortos da guerra urbana do Rio de Janeiro. É o www.riobodycount.com.br.

Visitei-os ontem, dia 5 de Fevereiro. Contavam 45 mortos desde o dia 1 de Fevereiro. É a contabilidade macabra de quatro dias de guerra no Rio.

Logo o primeiro "link" sugerido pela lista do Rio Body Count é o seu congénere e inspirador, o Iraq Body Count (www.iraqbodycount.org ). Também lá fui. Pelas dificuldades que a situação iraquiana impõe a uma contagem precisa, a contabilidade mórbida do Iraque admite um mínimo (ontem, 55664) e um máximo (ontem, 61369) de mortos desde 2003.

PUB

Entreguei-me às minhas próprias contas. Se tomarmos os números iraquianos pela média aproximada (58 000 mortos em 3 anos) chegamos a uma média de 19 333 mortos por ano. Se tomarmos como "normal" (ponham-se aqui aspas enormes)  a média de 45 assassinatos a cada 4 dias no Rio de Janeiro, chegamos a 4106 mortos por ano na "Cidade Maravilhosa" (as aspas aqui são opcionais).

Se tomarmos por base os 15 milhões de habitantes de todo o Estado do Rio de Janeiro (e é às mortes em todo o Estado que o riobodycount.com.br se refere), chegamos a 0,27 mortos por ano por mil habitantes no Rio (no Iraque, com 25 milhões de habitantes, são 0,77 mortos por ano por mil habitantes – 2,7 vezes mais do que no Rio).

Mas se levarmos em conta que a guerra carioca é nitidamente urbana e concentrada no Município do Rio (o mais populoso dos que compõem o Estado do Rio), e, portanto, tomarmos por base apenas os seus seis milhões de habitantes, chegamos a 0,68 mortos por ano por mil habitantes – praticamente o mesmo que no Iraque.

PUB

Mesmo com todas as imprecisões que possa haver nestes cálculos, o facto é que o conflito armado que mais tem mobilizado as atenções de toda a humanidade há pouco mais de três anos gera números horrivelmente comparáveis aos de uma guerra que se desenrola, digna desse nome, há pelo menos duas décadas, no Rio de Janeiro.

O Iraque é agudo. O Rio é crónico. Pior para o Rio.

A grande desgraça do Rio foi o gradualismo. Não há um marco, um antes e um depois – visível, pelo menos. A violência foi se instalando gradativamente, minando, penetrando gota a gota, até ao osso, ao âmago, à cultura daquela cidade. No Rio, a violência valeu-se do seu avesso – a suavidade – para imperar. E foi suave e silenciosamente, pé ante pé, que a violência galgou todos os degraus, até contaminar uma cidade inteira. De maneira brusca não chegaria tão ao fundo. O choque precipitaria uma reacção. Mas não houve choque, ou melhor (ou pior!), houve milhões de choques, mas todos dispersos, cada um a chorar o seu morto. Agora (e já lá se vão alguns anos), quando o Rio tenta reagir colectivamente, já é tarde. Está tudo demasiadamente entranhado.

PUB

Por mais que a guerra banalize a morte, nunca será tão profunda essa banalização quanto a que se faz no quotidiano, paulatinamente. Uma coisa (terrível) é ver o quarteirão destruído, os vizinhos mortos, as aulas suspensas, os transportes interrompidos, a cidade arrasada... outra (pior) é ver que tudo permanece como se nada tivesse acontecido quando, à janela da casa intacta, está um anúncio "VENDE-SE", porque os vizinhos foram chacinados.

PS: Os carros que, estacionados em cima dos passeios, empurram os peões para o meio da rua são uma violência que, paulatinamente, corrói a civilização que ainda haja por aqui.

Pub
Pub
Pub