Sá Carneiro, revisto e aumentado
Ou pelo menos, é disso que nos tentam convencer aqueles que se encarregaram de organizar homenagens ou de publicar livros para marcar os trinta anos da sua morte. Na noite de 4 de Dezembro de 1980, morreu tragicamente um primeiro-ministro em exercício, num período de consolidação de uma frágil democracia. Não poderia deixar de ser um momento de grande comoção, especialmente para aqueles que o apoiavam. Mas será possível distinguir o homem das suas circunstâncias?
Do que tenho lido, não me parece. A maioria dos trabalhos e artigos escritos nos últimos tempos tentam explicar e defender a excepcionalidade de Sá Carneiro. Outros, os líderes do PSD, tentam colar-se a esta imagem na esperança de que alguma da aura deste líder histórico os beneficie a eles, trinta anos depois. Segundo os peritos, Sá Carneiro foi um líder com uma frontalidade única, com um discurso claro e sem compromissos, uma ideia para Portugal, e um projecto de sistema de governo que iria garantir a consolidação da democracia.
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Não tenho dúvidas de que Sá Carneiro foi isso tudo. Mas também sei que ele não era o único com essas qualidades nos anos setenta em Portugal. A época da transição para a democracia trouxe para a política indivíduos notáveis, que reflectiam as enormes esperanças depositadas nas possibilidades de mudança no nosso país. E claro, estes líderes eram indivíduos com percursos políticos de coragem. Por exemplo, Mário Soares, Álvaro Cunhal, Freitas do Amaral. Todos eles, tal como Sá Carneiro, líderes partidários, e todos singulares à sua maneira.
À época da sua morte as circunstâncias políticas estavam prestes a deteriorar-se, em parte, devido ao falhanço de um dos seus objectivos mais importantes: o de conseguir eleger o candidato da AD à Presidência. Soares Carneiro ia perder as eleições Presidenciais, e o primeiro-ministro tinha já avisado que em caso de Eanes vencer ele iria demitir-se.
Além disso, é preciso notar que a AD, em 1982, conseguiu o objectivo principal deste líder, nomeadamente o de reformar a Constituição, extinguindo o Conselho da Revolução e diminuindo os poderes presidenciais. Sem dúvida que sem Sá Carneiro a AD se tornou muito mais conflituosa. Balsemão era mais à esquerda e não tinha ganho eleições. Mas o principal cumpriu-se, com um contributo importante de Freitas do Amaral, e claro, de Soares. Se assim revirmos Sá Carneiro, talvez possamos aumentá-lo sem falsas mitificações.
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A democracia tem uma qualidade importante, nomeadamente a de ir diminuindo paulatinamente o carisma e a excepcionalidade dos que nela exercem cargos electivos. De humanizar os líderes. Pode-se, pelas circunstâncias e pela personalidade, entrar para a política democrática de forma carismática. Muito mais difícil é sair dessa forma - de facto, o meio mais normal de abandonar o processo político em democracia é a derrota eleitoral. Depois de uns mandatos-chave enquanto primeiro-ministro e dois mandatos Presidenciais populares, Soares acabou num ignóbil terceiro lugar nas últimas eleições Presidenciais. Freitas do Amaral, depois ter sido fundamental para a mobilização da direita salazarista no apoio político à democracia, saiu derrotado nas eleições presidenciais de 1986. Mesmo Cunhal, teve de ver o seu partido ir sempre reduzindo o seu peso eleitoral, além de ser obrigado a aderir aos princípios e práticas da democracia representativa que inicialmente havia rejeitado.
Infelizmente, Sá Carneiro não viveu suficientemente para ser derrotado nas eleições, e ser admirado não apenas pelas suas virtudes e pelos seus êxitos, mas também pelas suas fragilidades e fracassos. A sua morte prematura condenou-o à mitificação, e à alimentação de um princípio na direita portuguesa que não tem nem sentido nem utilidade: o de líder messiânico.
Politóloga marinacosta.lobo@gmail.com
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marinacosta.lobo@gmail.com
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