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Corrupção no Estado de direito

A perceção da existência crescente de fenómenos de corrupção sistémicos e que o Estado, através das suas instâncias de controlo, não tem conseguindo prevenir, detetar e reprimir eficazmente, tem vindo a fazer crescer na opinião pública, a ideia de que todo o exercício de atividade política pressupõe a intenção de aproveitamento da coisa pública para fins privados, o que favorece a perda de confiança nos valores da democracia e fragiliza as instituições representativas dos poderes do Estado.

Os fenómenos corruptivos, nas suas diferentes configurações, atentam contra princípios fundamentais do Estado de direito, enfraquecem a credibilidade e a confiança dos cidadãos nas instituições e comprometem o desenvolvimento social e económico, fomentam a desigualdade, reduzem os níveis de investimento, dificultam o correto funcionamento da economia e fragilizam as finanças públicas.

Em causa estão princípios fundamentais de um Estado democrático, nomeadamente os da igualdade, transparência, integridade, livre iniciativa económica, imparcialidade, legalidade e justa redistribuição da riqueza. Ao mesmo tempo, os fenómenos corruptivos têm efeitos económicos profundamente nocivos, como o aumento da despesa pública em consequência de intervenções desprovidas de efetivo interesse público, a retração dos investidores e a distorção das regras da concorrência.

A perceção da existência crescente de fenómenos de corrupção sistémicos e que o Estado, através das suas instâncias de controlo, não tem conseguindo prevenir, detetar e reprimir eficazmente, tem vindo a fazer crescer na opinião pública, a ideia de que todo o exercício de atividade política pressupõe a intenção de aproveitamento da coisa pública para fins privados, o que favorece a perda de confiança nos valores da democracia e fragiliza as instituições representativas dos poderes do Estado.

Neste enquadramento e assumindo o princípio de que a intervenção penal se deve prefigurar como última ratio e que a capacidade repressiva do Estado nunca será suficiente se não houver uma intervenção a montante que enfrente verdadeiramente as fontes do problema, foi tornada pública a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024, que genericamente substancia uma intenção global e integrada de combate à corrupção.

Como prevenir?

Numa perspetiva preventiva, é conceptualmente proposto que a educação, o ensino superior, as estruturas de governo da Administração Pública e o setor empresarial assumam a função de garantes da aquisição de competências pessoais e de ferramentas institucionais que neutralizem a possibilidade de reprodução dos ambientes propícios ao desenvolvimento de práticas corruptivas.

Como reprimir?

Na dimensão repressiva, além da utilidade de se vir a condensar num único diploma legal as sucessivas anteriores intervenções legislativas avulsas de alcance processual, estão a ser preconizadas várias importantes alterações, entre outras, o fim dos megaprocessos e a otimização dos efeitos da confissão integral e sem reservas, no âmbito da denominada “justiça negociada” ou “direito premial” em matéria de corrupção.

Combate à corrupção à custa do Estado de direito?

Pela primeira vez em Portugal, está a ser pensada a possibilidade de os arguidos que resolvam quebrar o pacto corruptivo verem a sua pena dispensada quando denunciem o crime antes da instauração do procedimento criminal, verem a sua pena especialmente atenuada se colaborarem ativamente na descoberta da verdade ou até beneficiarem da suspensão provisória do processo. Uma alteração no sentido de se prever a possibilidade de celebração de um acordo sobre a pena aplicável, na fase de julgamento, assente na confissão livre e sem reservas dos factos imputados ao arguido, independentemente da natureza ou da gravidade do crime imputado, constitui efetivamente uma opção que pode muito proximamente vir a ser uma realidade instalada no processo penal português. No modelo idealizado na proposta pública apresentada, esse invocado acordo deverá incidir sobre a questão da sanção e não sobre a questão da culpabilidade [...].

Ora, sem prejuízo das putativas virtualidades que têm vindo a ser publicamente anunciadas, afigura-se-me especialmente grave que uma negociação com as referidas características possa vir a ser entabulada entre o Ministério Público e um arguido, e que o juiz fique vinculado a esse acordo.

Na prática, essa possibilidade proporcionaria total liberdade ao Ministério Público para escolher quem pretende perseguir criminalmente, em sacrifício do princípio da legalidade na esfera penal e a sua substituição por um perigoso e discricionário princípio de oportunidade. Antevê-se, com efeito e sem esforço, por exemplo, que, se assim vier a ser, será fortemente estimulada a negociação com arguidos para que entreguem “bodes expiatórios” por eles escolhidos às autoridades, de forma a escaparem eles próprios à ação da justiça.

Apesar de totalmente favorável à adoção de medidas de combate à corrupção, uma vez que se trata de um crime gravíssimo, creio que essa luta não se poderá empreender à custa do Estado de direito, substituindo-se a investigação criminal por “confissões” obtidas pelo Ministério Público e por “acordos-sentença”, sob pena de intolerável ofensa ao princípio da legalidade, tal como ele se encontra constitucionalmente consagrado. Que o bom senso prevaleça na discussão pública que se segue.

* Advogado, associado coordenador na Telles

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