Julgamentos pós covid-19: o que muda?
A regra é a de que os atos processuais se realizam através de meios de comunicação à distância adequados, apenas devendo sê-lo presencialmente quando não puderem ser praticados nestes termos.
A lei recentemente aprovada determina que as audiências de discussão e julgamento e as outras diligências que impliquem inquirição de testemunhas se realizam presencialmente, com observância das regras de segurança, de higiene e sanitárias definidas pela Direção-Geral da Saúde (DGS).
Aqui surge a primeira dúvida: quem, como e quando procede à verificação de que tais regras estão reunidas? A questão não é despicienda, pois está em causa a saúde e, no limite, a vida dos atores judiciários.
Quando não puderem ser feitas naqueles termos "e se for possível e adequado, designadamente se não causar prejuízo aos fins da realização da justiça", as diligências realizam-se através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente.
A opção do legislador poderá não ter sido a mais feliz: a decisão sobre o preenchimento dos critérios da possibilidade, da adequação e da ausência de prejuízo para os fins da realização da justiça será tomada por cada juiz de forma casuística, não sendo de excluir que, em situações em tudo idênticas, sejam tomadas decisões opostas, o que não contribui para a segurança jurídica.
Nos termos da mesma lei, alguns atos processuais – nomeadamente depoimentos de testemunhas e depoimentos de parte - devem ser sempre praticados num tribunal.
Esta escolha não é isenta de críticas, pois inculca a ideia de que aqueles meios de prova são mais nobres do que outros, o que não está em linha com o princípio da livre apreciação da prova.
Tal opção abre ainda a porta a que, quando as regras definidas pela DGS não puderem ser observadas, alguns magistrados determinem a prática imediata - através de meios de comunicação à distância adequados - dos atos possíveis, ficando a prática dos demais suspensa até ao momento em que tais regras possam ser cumpridas, criando uma entorse ao princípio da continuidade da audiência.
Deixa de ser obrigatória a prática de alguns atos em tribunal se houver acordo das partes em sentido contrário ou se as partes, os seus mandatários ou outros intervenientes processuais integrarem grupos de risco.
A segunda exceção suscita reservas: quando o mandatário de uma das partes pertence a um grupo de risco, todos os atos processuais serão praticados no edifício do tribunal, recaindo sobre aquele a ingrata opção entre preservar a sua saúde, intervindo na diligência através de meios de comunicação à distância, mas ficando em desvantagem relativamente à contraparte, ou comparecer presencialmente, em prejuízo da sua saúde, mas beneficiando o seu constituinte com a imediação da prova.
Quanto às demais diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes, a regra é a de que os atos processuais se realizam através de meios de comunicação à distância adequados, apenas devendo sê-lo presencialmente quando não puderem ser praticados nestes termos.
A respeito deste tipo de diligências, também se admite o exercício do direito de não deslocação pelos intervenientes que pertencem a um grupo de risco. Porém, determina-se que o interveniente em causa participará na diligência através de meios de comunicação à distância adequados, solução que parece ter ficado a dever-se a um lapso do legislador, na medida em que, nas diligências em causa, a hipótese da presença física apenas se coloca quando os atos processuais não podem ser praticados nestes termos…
Em conclusão: embora se reconheça a complexidade de legislar "à vista", nas inéditas circunstâncias criadas pela crise pandémica, e apesar de se louvar a decisão de começar a trilhar o caminho no sentido da progressiva normalidade da atividade judiciária e do descongestionamento dos nossos tribunais, encara-se com preocupação que tal caminho possa vir a ser feito com um aumento do nível de risco para a saúde dos intervenientes processuais e com algum constrangimento de determinados princípios enformadores do nosso direito processual civil.
Associada coordenadora na área de Contencioso
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