O motor de areia
Necessitamos de nos preparar de forma realista, para conviver mais umas décadas com este barril de pólvora social que é a economia do petróleo.
Agora que Portugal se prepara para tomar importantes decisões no plano energético, nomeadamente se deverá ou não avançar com a exploração de hidrocarbonetos, talvez fosse bom olharmos para os exemplos que nos chegam de fora e perceber que tipo de modelos poderão servir de guia na problemática do aproveitamento destes recursos naturais.
A exploração de hidrocarbonetos começou por ser uma atividade relativamente simples, reduzida a reservatórios bastante superficiais e utilizando tecnologia ao alcance de praticamente qualquer empreendedor com vontade de correr um risco aceitável. Essas fáceis reservas foram já praticamente todas exploradas e hoje em dia a indústria do petróleo e do gás é sinónimo de engenharia de ponta e de operações financeiras de grande volume. Estão por isso criadas condições para que apenas poucos atores possam participar e... só por si estas palavras deveriam fazer soar muitas campainhas de alarme em qualquer Estado democraticamente consolidado.
Supervisionar a gestão destes recursos usando os mesmos modelos que usa, por exemplo, na gestão da água, da floresta ou até mesmo das marés, do vento ou do sol, não se apresenta recomendável a nenhum Estado, por serem manifestamente insuficientes. Nestes casos tudo está muito mais acessível ao cidadão comum, que se tornará participativo e acabará por ter muito maior poder de influência e decisão. E ainda bem que assim é. Esta é mais uma excelente razão para se apoiar, com todo o empenho, a transição para as energias renováveis.
Mas tudo indica, infelizmente, que esta transição não estará completa a médio prazo e que nem sequer está para breve a fase em que possamos satisfazer as necessidades energéticas de uma sociedade cada vez mais gulosa com uma componente renovável verdadeiramente relevante. Interessa por isso prepararmo-nos, de forma realista, para conviver mais umas décadas com este barril de pólvora social que é a economia do petróleo. Para fazer face a estes desafios, o modelo de supervisão deverá assentar, a meu ver, num considerável investimento público na investigação científica e no conhecimento detalhado dos recursos existentes, bem como na criação das condições para que seja o Estado a ditar as regras e decidir os modelos de exploração.
Mais confortável do que avançar para a exploração - nas condições que determinarmos - de um recurso que evidentemente nos faz falta poderá ser comprá-lo a quem o produz em condições que muitas vezes deploramos. Não me parece, no entanto, que devamos ter em relação à energia a mesma posição que temos em relação à roupa e outros produtos de consumo de massas. É igualmente insustentável a longo prazo e ainda mais hipócrita e perigosa nos planos moral e económico.
Evitar o debate público, ou deixar que alguns grupos se declarem donos da discussão, equivale a criar condições para que interesses económica e tecnicamente poderosos encontrem terreno fértil para se instalar. Sempre achei curioso o facto de haver grande concentração de exploração em zonas do globo onde os regimes democráticos rareiam, como se a abundância de bacias sedimentares com condições de deposição anóxidas, geologicamente favoráveis à formação de reservatórios de hidrocarbonetos, estivesse de alguma forma relacionada com as opções políticas que, milhões de anos depois, dominam estas paragens.
É por isso urgente derrubar tabus e fazer a discussão sem qualquer tipo de preconceitos. Nenhuma outra entidade está mais bem preparada para liderar este processo de debate do que o Estado, fazendo uso dos mecanismos que democraticamente lhe são atribuídos pela sociedade. E o caminho não se fará certamente sem surpresas. Algumas más, é certo, mas outras bastante positivas, mesmo nas áreas menos esperadas.
Kijkduin é uma praia em Haia, capital administrativa do reino dos Países Baixos, junto ao setor holandês do mar do Norte. Nos dias de boa visibilidade (que infelizmente não são muitos), avistam-se da praia, a 15 km da costa, algumas das plataformas de exploração de petróleo e gás natural que mudaram consideravelmente o panorama da economia holandesa, consequência da descoberta, nos anos 50 do século passado, das maiores reservas de gás natural da Europa. Esta praia, que é sem dúvida uma das mais belas paisagens naturais (e protegidas) que conheço, teve o seu extenso areal ameaçado pelo impacto de algumas obras marítimas realizadas entre os portos de Roterdão (a sul) e Scheveningen (a norte). Na tentativa de resolver o sempre complexo problema da dinâmica dunar, os holandeses, reconhecidos especialistas na matéria, construíram o que eles chamam um "motor de areia", que distribui e redeposita ao longo de toda a costa a areia acumulada ao largo. Esta, como muitas obras que tornam a Holanda um país com eficientes políticas de proteção ambiental, foi paga com dinheiro que também veio da exploração de hidrocarbonetos (uma parte bastante relevante, segundo julgo saber). Parece-me evidente que este não é um exemplo isolado e que é efetivamente nos países em o que o ambiente não é tratado como feudo de alguns que as medidas de proteção ambiental são mais reais, por estarem integradas com o desenvolvimento económico, de que tanto dependem para se financiar.
Engenheiro civil (Instituto Superior Técnico)
Msc Engenharia do Petróleo (Imperial College London)
Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico
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