Palavras mágicas
Uma das experiências mais desagradáveis ao entrarmos numa loja na China é sermos de imediato perseguidos por uma prestimosa empregada que mimetiza todos os nossos passos a escassos centímetros de distância.
Paramos, ela pára; apressamo-nos e ela apressa-se. De nada serve apontarmos para os olhos e fazermos um gesto largo a indicar que estamos apenas a ver. A perseguição continua e já por diversas vezes tive de resistir à tentação de me virar de repente para trás e gritar "Uh!!". Este comportamento é tanto mais intrigante quando outras clientes, com um poder de compra visivelmente superior ao meu, entram na loja e, com um ar altivo, murmuram umas palavras à aproximação da empregada. É quanto basta para esta se afastar, vêem e experimentam o que querem sem serem incomodadas. Já tentei o ar altivo sem resultado pelo que deve ser das palavras. O que dirão?
De tentativa em tentativa consegui por fim ouvir a mágica expressão "kàn kàn". Consultei as minhas fontes e confirmei que quer dizer isso mesmo, "estou a dar uma vista de olhos". Munida deste meu novo vocabulário experimentei-o logo numa loja em Pequim. À aproximação da empregada disse-lhe com um ar sorridente e empregando dois tons descendentes contínuos previamente ensaiados: "kàn kàn". Afastou-se como por milagre. Levei a experiência às últimas consequências, retirando roupa do cabide e colocando-a à minha frente sem nada comprar e a rapariga continuou a observar-me à distância. Por fim, na despedida sussurrou, "màn zou" (vai devagar). A primeira vez que ouvi esta expressão fiquei algo desconfiada equiparando-a ao nosso "vai pela sombra", mas nada há de ameaçador naquele tom. Pelo contrário, as palavras são ditas com gentileza, quase num murmúrio, num afagar da alma e do coração. Fazem-me sempre pensar que já ganhei o meu dia.
"Màn zou" é uma frase muito utilizada pelos lojistas em Pequim quando se despedem dos seus clientes, uma espécie de "tenha um bom dia", mas há pouco voltei a ouvi-la em Chengdu. Foi no centro da cidade, num enorme passeio povoado de motocicletas onde muitas se acumulam à espera de clientes que transportam pelo caos do trânsito. Passo por ali tantas vezes que já conheço quase todos os donos e até sei dizer quando um deles tem um novo corte de cabelo.
"Ni shì yi xìa. Wo ài ni!" (anda na minha mota, gosto de ti) incitam-nos eles apontando para o engarrafamento sem fim. Quase nunca me atrevo, mas no outro dia aceitei o convite de uma mulher de ar decidido que de imediato preparou e limpou o meu assento. Por 20 yuan, cerca de 2,5 euros, gozei o privilégio de absoluta prioridade sobre qualquer outro meio de transporte incluindo o mais desclassificado de todos, o peão. Em Chengdu, as motos andam pelos passeios, pelas passagens de peões e também pelo asfalto das ruas. Para elas não há sinais vermelhos, basta-lhes apitar para que tudo e todos se afastem. Em cima da mota, envolta num apito constante, eu própria ganhei uma súbita importância, uma certa superioridade, o direito a exibir um sorriso escarninho. No fim, ao pagar os 20 yuan, "màn zou", disse-me a alegre motociclista, uma despedida simpática depois de percorrido em 10 minutos um percurso que normalmente leva 40.
De vez em quando também se pode ouvir "màn zou" em Cantão. Numa das minhas interacções à hora do almoço, a empregada queria saber a todo o custo qual era o meu país. Portugal, esclareci, mas ela franziu os sobrolhos demonstrando desconhecimento. "Putaoya", repeti. Afastou-se e vi-a entretida com o telemóvel para voltar pouco depois. "Eu sei falar português. Tu és muito bonito", anunciou num português cheio de tons e consultando de vez em quando o telemóvel. Instintivamente olhei para o lado à procura da correspondência de género, mas não, era mesmo comigo. Agradeci, habituada a este tipo de elogios em mais nenhum outro lugar a não ser na China. Na China, os elogios que antecedem os "mas" excedem sempre as nossas expectativas. "Màn zou" (vai devagar) disse-me ela na despedida. Até breve, respondi.
Professora na ISCTE Business School e no INDEG-IUL ISCTE Executive Education
Mais lidas