[101.] Reebok
A mais recente campanha de equipamentos desportivos Reebok centra-se em torno da frase «I am what I am», «eu sou o que eu sou».
Os anúncios em «outdoors» mostram, entre outros, o tenista Andy Roddick ou o «rapper» que dá pelo nome de 50 Cent. A campanha usa letragem gótica; esta letra antiga torna-se do nosso tempo porque os ii do pronome pessoal eu se apresentam em letra minúscula; seria impensável que no passado se usassem ii minúsculos para o pronome eu. Em Portugal, os anúncios não foram traduzidos. No canto do espaço lê-se a tradução da frase.
A utilização exclusiva do inglês do anúncio assinala uma vez mais o quanto a globalização nos impõe a linguagem da cultura popular anglo-saxónica, em especial americana. (Mesmo que os produtos sejam fabricados no Terceiro Mundo, a marca global «fala» quase sempre inglês e respira a ambiência da cultura popular norte-americana; só algumas marcas de moda e perfumaria francesas quebram o monopólio global anglo-saxónico.)
O que dizem estes anúncios da Reebok? Resumem-se à frase «eu sou o que eu sou». Parece que não diz nada. É uma afirmação tautológica, que se justifica consigo mesma. Dizer «eu sou o que eu sou», no campo gramatical, equivale a dizer que o azul é o azul ou a noite é a noite. Mas a significação é bem mais profunda que a redundância gramatical.
A sociedade contemporânea, por ser mediática, por ser do espectáculo, acentuou uma característica essencial dos indivíduos: a representação. Todos representamos nasmais variadas situações sociais, mesmo com as pessoas mais íntimas. Faz parte de nós, sempre foi assim. A diferença está em que hoje temos consciência da nossa contínua e variada representação. Sabemos que os outros representam, sabemos que representamos.
Vemos câmaras por todo o lado, vemos centenas, milhares de pessoas como nós em «reality shows», em «talk-shows», até em campanhas publicitárias. Aprendemos em cursos de «marketing» ou de reciclagem na imprensa a representar para melhorar as relações humanas e a performance do negócio. Todos usamos o sorriso que há meio século era apenas das hospedeiras de bordo.
A frase «eu sou o que eu sou», em português, inglês, francês ou qualquer outra língua é repetida muitas vezes em «reality shows» em que os concorrentes sentem a necessidade de explicar que estão ali representando umpapelmas que se sentem fiéis a si mesmos. E na campanha da Reebok, o que significa «eu sou o que eu sou»? O mesmo que os concorrentes dos «reality show» afirmam. A Reebok fornece um suplemento vitamínico de identidade aos observadores dos seus anúncios: eles devem sentir-se eles mesmos, devem ter orgulho em serem como são. Devem julgar que são únicos.
Naturalmente, o lado comercial é perverso. Porque o observador deve ser o que é sendo igual a milhões de outros que usam Reebok. Deve ser o que é não sendo nada original, nada único. O anúncio quer o contrário do que diz: a marca pretende a massificação dos seus produtos, logo pretende a massificação dos indivíduos, que todos usem Reebok. A campanha diz aos observadores que cada pessoa é única, razão pela qual apresenta em cada anúncio indivíduos que se distinguiram na sua área profissional, como a vitória de Roddick no US Open em 2003.
Não é por acaso que o anúncio mostra a taça em grande destaque, tão grande quanto a imagem do próprio Roddick: ele é o que é, ele é o único que ganhou aquela taça. O anúncio diz: seja único como ele... e compre Reebok como toda a gente.
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