Nova fase
Uma dívida elevada mas não demasiado elevada tem o pequeno inconveniente de sujeitar o devedor aos caprichos do mercado
Uma dívida elevada mas não demasiado elevada tem o pequeno inconveniente de sujeitar o devedor aos caprichos do mercado: o devedor pode ser alimentado indefinidamente com taxas de juro baixas, desde que os credores acreditem; mas se, de um momento para o outro, os credores se tornam mais pessimistas, as taxas de juro sobem e a probabilidade de o devedor não conseguir servir a dívida aumenta, auto-validando as expectativas, em ciclo vicioso. No final, um devedor que até teria condições para sobreviver num contexto de estabilidade financeira é atirado para a ruptura, simplesmente porque os agentes económicos se tornaram mais avessos ao risco.
Nesses casos, a intervenção faz sentido: se o devedor demonstrar ser solvente num cenário de credibilidade, uma tentativa de coordenar as expectativas dos agentes económicos em torno desse cenário poderá revelar-se também uma profecia auto-sustentada. Mas a intervenção só funciona na medida em que exista viabilidade financeira: aqueles que estão condenados à falência qualquer que seja o sentimento de mercado, deverão passar primeiro por um processo de reestruturação e abate de dívida. Nesse processo, será desejável envolver os credores, para evitar a fuga desordenada, e concentrar esforços no apoio ao sistema financeiro. Na prática, o facto de existirem terapias distintas para situações distintas significa que é muito importante, antes de qualquer iniciativa, identificar bem o problema. Quando não, desperdiçam-se recursos escassos na estratégia errada.
Na Zona Euro, infelizmente, a intervenção já chegou aos países grandes. Até aqui, a Itália e a Espanha tinham conseguido esquivar-se aos receios dos investidores, mas a evolução dos acontecimentos não lhes foi favorável. O contágio atingiu o coração da Europa e a crise entrou numa nova fase. Agora, o cenário de estabilidade está mais longe. Os líderes europeus não se entendem quanto à melhor forma de ajustar as instituições e mesmo que se entendessem não é evidente que conseguissem tirar da cartola um coelho suficientemente grande para convencer os agentes económicos a confiar nas dívidas soberanas como antes. Gato escaldado da água fria tem medo.
Nesta nova fase, a margem de manobra para recorrer à solidariedade europeia tornou-se mais escassa. A ideia de que os países menos expostos à crise se devem endividar para adquirir dívida dos países indisciplinados, a preço de amigo, e por essa via evitar que a crise os atinja também já não era fácil de vender quando os montantes eram pequenos. Agora, pedir a um conjunto cada vez mais pequeno de cidadãos para continuar a avalizar as dívidas dos outros, ainda por cima num contexto de fraco crescimento, é pedir-lhes para serem arrastados também para o fundo. As obrigações europeias são, neste momento, uma quimera politicamente inviável.
O problema é que também a intervenção do BCE tem limites. O BCE tem por missão assegurar a estabilidade do sistema financeiro, mas também a estabilidade nominal. Para cumprir a primeira missão sem colocar em causa a segunda, o BCE tem conduzido intervenções esterilizadas. Mas tal estratégia não será fácil de manter num cenário de alargamento das intervenções. Ainda bem, dirão alguns, pois uma inflação moderada será a melhor forma de mitigar os custos financeiros, consubstanciando a inevitável transferência de rendimento dos agentes credores para os agentes devedores. Mas um percurso demasiado longo nessa direcção seria também caminhar para a inviabilidade política do projecto do euro.
Tendo em conta a qualidade das alternativas, é natural que a tolerância ao erro por parte dos nossos parceiros se torne cada vez menor. O acesso aos mecanismos de ajuda estará sujeito a uma condicionalidade cada vez mais apertada, visando separar muito bem o trigo do joio. Os países que se desviarem da rota serão convidados a reestruturar e os que reestruturarem enfrentarão barreiras políticas à sua permanência no clube. Portugal, neste momento, tem o privilégio de beneficiar de um plano de ajuda a três anos, que à última hora já foi difícil de arrancar. É bom que o cumpra escrupulosamente, pois pelo andar da carruagem não é certo que venha a ter uma segunda oportunidade.
Professor da Universidade de Aveiro Coluna quinzenal à terça-feira, excepcionalmente é publicada hoje
Coluna quinzenal à terça-feira, excepcionalmente é publicada hoje
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